A pandemia mudou nossa vida, das questões mais drásticas ao lazer – ir ao cinema, por exemplo. Nomadland (Nomadland, EUA, 2020,1h48 min.), de Chloé Zhao, ganhou o Leão de Ouro, em Veneza, no ano passado, e neste 2021, recebeu o Oscar de filme, diretora e atriz, todos merecidos. Chegou ao Brasil em abril, mas quem, em meio à quarentena, se aventurou a vê-lo?
Parece estranho publicar a crítica do filme agora. Ocorre que a rede Telecine acaba de colocá-lo na grade tornando-o acessível a um público mais amplo. E não dá para ficar indiferente a Nomadland.
Estruturalmente, trata-se de híbrido de ficção (concebido como história ficcional) com documentário, porque há personagens nômades reais, como Linda May, Swankie e Bob Wells, que representam eles mesmos. Tal estrutura beneficia a narrativa porque esses personagens são a materialidade da crise econômica de 2008, nos Estados Unidos, quando começa o filme e Fern (Frances McDormand) se vê obrigada a pôr o pé na estrada, tendo uma van como casa, porque já havia perdido o marido e, Empire, Nevada, a cidade onde vivia, desapareceu com o fechamento da fábrica em que trabalhava.
Ver pessoas acima dos 60 anos sofrendo efeitos cruéis da crise permite-nos enxergar o grande e rico país capitalista sob outra perspectiva: na terra das oportunidades, quem não serve mais ao mercado é lançado fora.
E quem precisa, ou gosta de trabalhar, como Fern, até poderá até usar o crachá da poderosa Amazon por tempo determinado, mas terá de esquecer a condição de professora para se submeter a qualquer serviço (limpar banheiros imundos e ser desrespeitada por homens grosseiros, colher beterraba no Nebraska, trabalhar na cozinha de fast food).
A chinesa Chloé Zhao, também roteirista, soube usar bem o drama descrito no livro homônimo de Jessica Bruder. E soube explicitar a dramaticidade do norte-americano ciente da própria dignidade, autosuficiência e aversão à vitimização, como mostra a cena em que alguém oferece lugar mais aquecido para Fern dormir e ela declina. Chloé também evita a comoção. As histórias são tristes, pois as personagens estão solitárias, longe das famílias e lutando para sobreviver; portanto, o drama está posto e não há necessidade de lhe acrescer dimensão maior.
Assim, a diretora se apega às imagens porque elas dizem palavras.
São paisagens solenes e cenários com nasceres e pores do sol nos quais os personagens são colocados à prova o tempo todo, pois elas são um chamado à melancolia ante a saudade de casa e de entes queridos.
Para além de adereços bonitos, a trilha sonora de Ludovico Einaudi desperta sentimentos profundos de tristeza e de beleza em casamento que cai à perfeição a uma história de grandes perdas e de pequenas conquistas geradas em contexto no qual sobressaem generosidade, cuidado com o outro, afeto (que, muitos, talvez, nunca tivessem experimentado) e amizade iguais à de Fern com Dave (David Strathairn).
Frances McDormand traduz esses sentimentos com poucas palavras, expressões de rosto do rico repertório que possui, gestos, postura corporal, olhar que pode ser terno e ríspido e a incorporação da solidão de um modo a não parecer derrotada e, ao mesmo tempo, incapaz de esconder a carência.
Veja o trailer no link https://www.youtube.com/watch?v=_nOeh677C8U
Lindo quando ouve poema de ex-aluna ensinado por ela; lindo quando declama outro poema ao jovem nômade Derek (Derek Endres) tão cheio de vida e de futuro e, no entanto, largado na estrada como se não houvesse um destino, um ponto de chegada, saídas possíveis.
Nomadland é quase desesperançado. Não, quando Swankie atinge o objetivo que havia traçado de chegar ao Alasca e se encanta com os filhotes das andorinhas saindo das cascas e os pedaços do invólucro que as abrigou na gestação caindo no rio formando pontinhos brilhantes e desvelando espetáculo de exuberância da vida. Ou quando, ao redor da fogueira, amigos homenageiam alguém que partiu, ou, ainda quando a forte, corajosa e decisiva Fern decide se desfazer do passado e ir ao encontro do que lhe pode dar esperança.
Afinal, a vida é feita de tribulações, tragédias, muitos perigos e não poucos desassossegos e desencontros e, para encará-los, faz-se necessário superar os medos. Mas a vida também oferece encontros, alegrias, belezas, renascimentos e encantos e seremos sábios quando tivermos a coragem para receber as oferendas e desfrutar delas.
Em cartaz na rede Telecine
João Nunes é jornalista e crítico de cinema