Já limpei as gavetas, os armários, o piso, os rodapés e os livros da estante. Doei roupas e bijuterias, troquei os travesseiros, mudei até a colônia de dormir para aquietar o sono com camomila, presente da minha amiga Ciça. Para o corpo, testei um hidratante com leite de arroz e extrato de pérolas. Para as mãos, Vanessa me deu um creminho de lichia que é pura delicadeza na pele. Limpei meus santinhos do oratório, consertei os óculos quebrados, joguei os badulaques que não usava mais, tudo isso durante a pandemia que não acaba nunca.
Ainda bem que, mesmo distantes, amigos e familiares estão sempre presentes.
Mesmo assim, depois de tanto tempo, o ânimo tende a diminuir, a procrastinação insiste em nos jogar da cama para o sofá, do sofá para a poltrona. Portas fechadas, janelas abertas, tantas coisas boas deixadas para depois, especialmente os cafés descontraídos com as amigas. Até mesmo as consultas médicas são transferidas para daqui duas ou três semanas, medo de encontrar o vírus no caminho, ainda mais depois de tantos membros da família terem encarado esse corona devastador, cruel e inoportuno.
Quando se ouve falar da transmissão, parece que o corona está longe de casa, mas quando atinge um ente querido (ou entes queridos), dói pra caramba.
Pior que tem que permanecer distante das pessoas, mesmo quando elas estão doentes, com algumas mensagens por dia para não invadir a privacidade e o descanso do outro. Também muitas orações, já que rezar tranquiliza.
Na mesinha de cabeceira tem floral da emergência, o sempre bem-vindo Rescue. Tem almoço pra fazer, roupa na máquina, presentes do aniversário pra guardar, todos gentilmente enviados por pessoas queridas. Zap a fortalecer os laços, mensagens de voz a encorajar nos momentos em que chega a notícia ingrata de mais um parente com Covid.
Me recuso a mudar de idade do ano passado pra cá, afinal não vivi como gostaria, não abracei as pessoas que amo, não viajei para ver minha irmã, não acompanhei o crescimento dos meus priminhos João Pedro e Gabriel, quanta coisa eu perdi! Todos nós perdemos, mas se estamos vivos, vamos agradecer.
Pior que tem gente disposta a mudar o nosso destino para pior mesmo em meio a uma crise como a que enfrentamos no momento. Pessoas que não pagam o que devem e se comportam como se fossem sérias, respeitadas, do bem. Gente que tira proveito da nossa boa-fé para agir de má-fé. Criaturas insensíveis que agem sorrateiramente, com pose, nariz empinado e descaso.
Conheci muita gente boa sendo enganada nessa quarentena. Pessoas que perderam o emprego e não receberam seus salários. Outras que tentaram negociar suas dívidas e não conseguiram, algumas que estavam em tratamento médico e ficaram sem seus planos de saúde. Já tentou falar com um gerente de banco nos últimos meses? Tem sempre uma voz avisando que o momento é perigoso, portanto, melhor fazer tudo on-line. Não concordo. Há outras formas de contato que não contagiam.
Responder e-mails não deixa ninguém doente, muito menos dar um retorno pelo zap ou telefone da sua casa, me desculpe, mas essa forma de atendimento distanciada está criando uma outra pandemia: a do descaso.
Quem tem conta bancária volumosa sofre menos, claro. Aliás, nesse País, os menos favorecidos são os mais atingidos, sempre.
Da mesma forma que temos que escolher bancos e outras instituições necessárias para nossa sobrevivência, também precisamos, mais do que nunca, escolher as pessoas certas para continuar enfrentando esse isolamento sem fim que merece ser compartilhado com quem é digno, do bem, humano e solidário.
Vamos nos unir a quem pensa e age como a gente, sem dar espaço aos que querem ferir, maltratar, ludibriar e tirar proveito.
Melhor deixar a laranja podre bem longe do cesto, que é para não contaminar os bons frutos. E vamos acreditar pelo menos na justiça divina. Ainda levo a sério o ditado que diz: “Aqui se faz, aqui se paga”.
Janete Trevisani é jornalista – [email protected]