Vinte ou trinta anos atrás, a internet era anunciada como o portal de entrada da humanidade, em escala global, na era informacional. A democratização do acesso à informação e o compartilhamento de saberes traria à Ciência envergadura suficiente para superação de dogmas e tabus, da mesma forma que a construção de uma sociedade em redes, multiconectada e descentralizada, tenderia a combater tiranias e autoritarismos.
As distopias de um futuro dominado por máquinas de escravidão e alienação do ser humano, entretanto, parecem ter se misturado ao futuro promissor que se materializa hoje, no século XXI, com nosso testemunho sobre negacionismo científico, revisionismo histórico, fundamentalismo ideológico e o (quase) triunfo da pós-verdade e de fake news sobre o senso crítico e o pensamento libertário. Isso porque as infovias são apenas meios, ferramentas, e não fins ou soluções.
Mesmo diante da ascensão das mídias digitais e dispositivos eletrônicos, os livros físicos, tantas vezes censurados, queimados e destruídos por projetos perversos de controle e alienação sociocultural, se erguem como uma espécie de pilar edificante de civilizações que buscam se orientar pelo conhecimento e pela razão, resistindo à manipulação algorítmica de bots e inteligência artificial em redes sociais e à doutrinação propagada em palanques e altares, representando alguma forma de materialidade mais duradoura e confiável na modernidade líquida que escorre pelas telas brilhantes em nossas mãos.
Essa tecnologia analógica milenar continua fascinante! Quem lê, sabe: é indescritível a sensação de correr os dedos pelas páginas de um livro que chega até nós como um universo novo a ser desvendado. A textura do papel e as cores que nascem do contato entre a tinta e as folhas jamais poderão ser simuladas por tabletes ou smartphones. Muito menos o perfume desses pequenos tesouros, que são os livros, quer sejam novos, recém-impressos, ou antigos, colecionando aromas e marcas que os tornam únicos, quase dotados de personalidade.
Como uma fotografia do tempo-espaço, desenhado em certas circunstâncias e a partir da perspectiva de mentes brilhantes, inquietas, curiosas, indignadas, inspiradoras, perturbadas, ambiciosas (e tantos adjetivos que poderiam descrever autoras e autores), os livros físicos, mais do que nunca, funcionam como fendas que se abrem entre o real e o virtual, o físico e o digital, o efêmero e o permanente. As subjetividades contidas nas diferentes versões de mundo que percebemos ao atravessar universos transcritos em verso e prosa são produtos e produtoras da humanidade expressa por nossos desejos e necessidades, sonhos e intenções, medos e paixões. Entre epopeias, dramas, romances, poesia, manifestos e ciência, a arte literária tem poder catalisador de dar vida a mensagens subversivas, disruptivas e transformadoras.
E, apesar das enormes dificuldades deflagradas pela pandemia nos últimos anos, se manteve quase inabalável a presença dos livros na rotina das pessoas, inclusive as mais jovens, que são alvo frequente das armadilhas tecnológicas feitas para sequestrar tempo, energia e criatividade.
O livro pode ser um refúgio silencioso, um lugar de reflexão e até mesmo esconderijo. Mas quando viaja entre mãos e mochilas, estantes e prateleiras, transbordam para a coletividade, estimulando que todos e todas que por ele se deixaram encantar busquem o compartilhamento de ideias olho-no-olho e se engajem a influenciar o mundo real, exercendo cidadania nos lugares físicos onde habitam.
Mais do que isso: com poder muito maior que a própria internet, por se alimentarem de criatividade e imaginação, e não de eletricidade, possibilitam viajar por incontáveis realidades, criando caminhos espaço-temporais quase imune às manipulações e distorções tão comuns no ciberespaço, possibilitando a leitoras e leitores criar relações e significados entre aquilo que leem e aquilo que sentem sem a interferência invasiva de saqueadores de metadados, anúncios patrocinados e sugestões tendenciosas de consumo de conteúdo.
A quem almeja liberdade, difícil pensar num trajeto que não esteja repleto desse curioso objeto que chamamos de livro.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.