Chegando à metade do primeiro ano de mandato Lula-Alckmin, diante da severa crise deixada pela incompetência do governo anterior durante uma grave pandemia, tanto a esquerda mais progressista quanto a direita neoconservadora se mostram bastante insatisfeitas com a posição centrista que vem se reafirmando nas negociatas entre Executivo e Legislativo na busca por governabilidade.
Tudo depende do ponto de vista do observador – e na política não é diferente: para os apoiadores do fascismo neoliberal, a simples desaceleração do programa de retrocessos sociais, ambientais e civilizatórios do bolsonarismo é motivo para gritar nas redes sociais que estamos caminhando para o comunismo. Por outro lado, para grupos e movimentos que esperavam por uma revolucionária guinada à esquerda, a agenda presidencial segue omissa, conivente com os interesses do Congresso, majoritariamente à direita, e do grande empresariado.
Lula só foi eleito pela primeira vez, em 2002, quando se propôs a baixar o tom e governar não só pelos interesses de grupos populares de menor poder aquisitivo, mas também dos poderosos que lucram com a exploração socioeconômica das massas. Fortalecendo o SUS, ampliou o acesso à saúde pública e elevou os ganhos da indústria farmacêutica e hospitais particulares com parcerias público-privadas.
Com o ProUni e o FIES, oportunizou o acesso ao Ensino Superior a pessoas marginalizadas e elevou exponencialmente o lucro das faculdades particulares com dinheiro público. Através do Minha Casa Minha Vida, buscou garantir o direito constitucional à habitação digna a famílias que careciam de moradia, enquanto faturavam alto as empreiteiras, construtoras e o setor da construção civil. Elevando o Brasil a potência global do agronegócio, acenava ao MST e à agricultura familiar com uma mão e, com a outra, liberava crédito aos latifundiários que seguem destruindo o Cerrado e a Amazônia para ampliar campos de soja e gado bovino.
Ao voltar ao poder, duas décadas depois, o mundo já não é o mesmo, mas a economia segue globalizada, refém de grandes corporações transnacionais controladas por oligarcas e bilionários que colocam a si e seus lucros muito acima das democracias, dos interesses populares e de pautas que deveriam ser prioridade, como as relacionadas à preservação ecológica, ao fim das guerras e à proteção da vida e da dignidade do ser humano. Ter um ex-tucano na vice-presidência diz muito sobre as intenções do governo. Tanto quanto entre 2003 e 2010, quando o cargo foi ocupado pelo já falecido empresário José Alencar, filiado, na época, ao PL e, depois, ao PRB, siglas que alocam Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão atualmente.
Por mais que pareça uma batalha impossível de se vencer, é necessário que ela seja, ao menos, reivindicada e disputada, sob o risco de permanecermos por mais décadas, séculos, prisioneiros da lógica predatória de acúmulo e desigualdades característica do capitalismo – só que agora com 5G, chatGPT, criptomoedas e apostas online.
Tensionar o Brasil ao campo progressista das democracias populares é fundamental, principalmente pelo papel de liderança que nosso país pode (e deve!) exercer na América do Sul e no BRICS, pavimentando um caminho de emancipação econômica através do fortalecimento da soberania nacional e da ampliação das garantias sociais à população, para que seja possível exercer cidadania com consciência e liberdade, algo muito além do papel de produtores-consumidores que somos forçados a desempenhar hoje.
Para tanto, é preciso enfrentar o Poder Legislativo – e essa é uma tarefa árdua. Controlado pelas bancadas que representam a Elite do Atraso, nas palavras do sociólogo, advogado e professor Jossé Souza, o Congresso permanece instrumentalizado, condicionado aos interesses particulares de ruralistas, pastores, militares, empresários e políticos carreiristas. Embora haja crescente resistência exercida por partidos como PSOL e REDE em bancadas minoritárias (como a Ativista, do Cocar, Feminista, Antirracista) que buscam romper com o parasitismo político, a maioria dos senadores, deputados e deputadas ainda toma suas decisões ponderando sobre as vantagens e privilégios que herdarão para si, e não no interesse popular, diante de suas escolhas.
Sim – é um alívio ver o Brasil recuperar pouco a pouco sua credibilidade internacionalmente, retomando acordos multilaterais, preenchendo lacunas estratégicas na diplomacia geopolítica, enquanto o clima democrático se reestabelece nas Instituições, após anos de truculência, negacionismo científico, revisionismo histórico e a mais cruel necropolítica que já vivemos desde a ditadura civil-militar. Políticos mercenários começam a ser confrontados com as provas de seus crimes e trapaças – incluindo o ex-presidente e os ex-heróis da Lava-Jato.
Mas a agenda de ataques aos povos originários, à ampla classe trabalhadora, aos pequenos produtores rurais, às pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, à preservação ambiental, a quem fomenta o pensamento crítico e aos grupos que defendem uma reestruturação mais robusta segue comandando as negociatas em Brasília, com forte apoio da imprensa tradicional e das big techs, como Google, Meta e Twitter.
Ao deixar em segundo plano confrontos difíceis (e urgentes!) como a revogação do Novo Ensino Médio e da Reforma Trabalhista, Lula abre espaço para que a agenda neoliberal se enraíze cada vez mais nas decisões políticas, legitimada por promessas que se restringem ao consumismo emblemático de um capitalismo populista – a exemplo da picanha, da cervejinha, do preço dos combustíveis, dos importados chineses e do carro popular.
Muito diferente da fantasiosa polarização entre esquerda comunista e direita nacionalista, testemunhamos a disputa encenada entre um liberalismo mais conservador e um liberalismo mais progressista, analogamente ao secular embate entre Republicanos e Democratas nos EUA, onde continuam sendo criminalizadas e asfixiadas alternativas ao capitalismo corrosivo que só se sustenta através de guerras, entretenimento sensacionalista e naturalização da exploração socioambiental.
Prova disso é o fracasso do Executivo Federal em aprovar a PL 2630/2020, que visa restringir o poder virtualmente ilimitado das empresas que controlam as redes sociais; e o sucesso da Câmara em continuar passando a boiada com a aprovação da PL 490/07, que deixa os povos originários ainda mais vulneráveis diante do avanço da mineração e do agronegócio a partir de um marco temporal que desconsidera a luta histórica de resistência e sobrevivência dos indígenas antes da Constituição de 1988.
Comprando apoio com emendas parlamentares para manobrar com Medidas Provisórias, o governo cai na areia movediça da política do jeitinho. Do mesmo jeito, o jogo sujo dos oportunistas que pariram o bolsonarismo tenta minar as investigações do atentado antidemocrático de 08 de janeiro de 2023 com a abertura de uma CPI pretensamente contaminada por insufladores do golpe fracassado, ao mesmo tempo em que outra Comissão foi aberta paralelamente para atacar o MST, cuja luta fundamenta-se pela garantia constitucional por reforma agrária em observação à função social da propriedade privada.
O terrível teto de gastos muda de nome, para arcabouço fiscal, mas a suposta vitória de governo que prioriza o povo é comemorada por aqueles que lucram com as crises. O salário mínimo sobe discretamente, enquanto os juros permanecem altos, como desejam os rentistas, e a discussão sobre tributar grandes fortunas, iates, jatinhos e dividendos multimilionários é retirada da ordem do dia.
Lula, embora democraticamente eleito pela maioria do povo brasileiro, segue tutelado pelo Congresso que se perpetua há décadas aproveitando brechas no legalismo burocrático que escapa à compreensão da maior parte do eleitorado. A última pessoa que ousou enfrentar essa máquina voraz foi Dilma Rousseff, vítima de um golpe inescrupuloso que jamais penalizou seus executores. Autoproclamado antissistema, Jair Bolsonaro terminou seu governo escorado (domesticado e, depois, abandonado) pelo mesmo centrão, de onde nunca realmente saiu.
Se o centralismo de Lula for medido pela régua que coloca Marina Silva de um lado e o agronegócio de outro, ou Flávio Dino mordendo enquanto Fernando Haddad assopra, restará quase nada além de entregar, mais uma vez, o destino do país aos imperativos de quem controla o mundo sem ter sequer disputado eleições, imune às vitrines do julgo popular, restrito a condenar a corrupção política como desvio moral e individual, enquanto banqueiros, megaempresários, latifundiários e especuladores bilionários ditam as regras de uma ditadura camuflada, com grilhões transformados em fetiches de consumo e poder com os quais nos acostumamos cada vez mais a viver.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.