Em entrevista aos jornalistas no Rio, em 1942, Orson Welles foi sarcástico ao responder o porquê de Cidadão Kane não ter ganhado o Oscar daquele ano – teve oito indicações e conquistou apenas o de roteiro. “Isto é Hollywood”, afirmou. Poderia dizer o mesmo sobre os roteiristas que ganhavam cachê, mas não apareciam nos créditos dos filmes. Mank (Mank, EUA, 2020, 2h12 mtos), de David Fincher, nominado para dez Oscar em 2021, tangencia este tema – mas poderia ser a essência dele.
O longa de Fincher acompanha os bastidores da escritura do roteiro de Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), desde há muito tempo considerado pela crítica internacional o melhor (ou um dos) de todos os tempos. O roteirista escolhido para escrevê-lo foi Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), conhecido por Mank.
Trata-se de sujeito de bom caráter que conquistou espaço em Hollywood nos anos 1920/1930. A estrutura do filme revela o dia a dia da confecção do roteiro durante dois meses feita por esse profissional, a estas alturas, alcoólatra, sempre disposto a encarar os chefões dos estúdios e, consciente da própria capacidade, aturar as pressões de Orson Welles (Tom Burke), aqui obscuro coadjuvante.
As qualidades de Mank são inequívocas. Da belíssima fotografia de Erik Messerschmidt (provável vencedor do Oscar deste ano) à performance de Gary Oldman, passando pela ambientação e reconstrução de um momento na história do cinema que redefiniu muito do que existe, hoje, na produção audiovisual em todo o mundo.
No entanto, ao retratar o nascimento de obra referencial e cultuada, David Fincher parece ter pretendido que Mank também se tornasse produção de referência e pariu um estudo. Para o apaixonado por cinema, tal estudo será bem-vindo porque traz elementos importantes da história de um produto cinematográfico único. Para o grande público consumidor de filmes, Mank pode não ser um bom programa.
A começar da fotografia em preto e branco – em que pese ser linda, uma opção conceitual equivocada. Não seria preciso dispensar a cor para abordar um filme antigo, mesmo que seja Cidadão Kane. Os caprichados diálogos, as citações e situações engraçadas e as evocações do clássico tampouco devem atrair o espectador comum. Assim como a excepcional direção de arte e algumas cenas notáveis – a do jantar quase ao final, quando o roteirista despeja sobre os executivos do estúdio suas ironias e ressentimentos com verve desafiadora e impiedosa.
O grande problema de Mank está no roteiro de Jack Fincher (pai do diretor) e a incapacidade dele de definir o foco do filme. Preocupado em contar as muitas histórias de bastidores, o roteiro abre janelas em demasia e cita nomes e mais nomes de figuras importantes, que, se de um lado, situa o espectador, de outro, peca pelo excesso de informação.
Veja o trailer. Clique no link https://www.youtube.com/watch?v=vuKEg9qgDOc
O mote é saber como se desenhou o roteiro de Cidadão Kane e quem o escreveu. E por que Mankiewicz não se interessava por assinar os créditos dos filmes e o reivindicou no longa de Orson Welles e, qual papel cabe ao famoso diretor – para quem não ter ganhado o Oscar de 1942 definia Hollywood? Mank poderia tratar de forma mais elucidativa e mais acessível estas questões e destrinchar um ícone do cinema de modo a revelá-los para as novas gerações; afinal, Cidadão Kane é revolucionário, histórico, inovador e marco definitivo do cinema.
O jornalista brasileiro, Sergio Augusto, por exemplo, não concorda que Mankiewicz tenha escrito sozinho o roteiro. Em 1991, quando dos 50 anos do lançamento de Cidadão Kane ele deixou bem explícita a genialidade de Welles e apostou na co-autoria do roteiro. A impressão final de Mank é a de que o filme possui inúmeras qualidades que serão apreciadas apenas pela crítica – e não precisaria ser assim – aumentando ainda mais o preconceito de que crítico gosta de filmes inacessíveis e complexos.
Disponível na Netflix
João Nunes é jornalista e crítico de cinema