Um filme com a pulsão e as tensões geradas pelo tema urgente e dramático de “Medida Provisória” (Brasil, 2022, drama-ficção científica, 94 min., 14 anos), de Lázaro Ramos, merecia título mais atraente e caloroso. O nome burocrático coloca a determinação sórdida de um governo ignóbil em primeiro plano quando o protagonismo da trama deste primeiro longa de Lázaro como diretor se encontra na resistência. Desse lugar nasce o poder das imagens, das palavras e da narrativa do filme.
O lindo poema declamado pelo jornalista André (Seu Jorge), por exemplo, deve ocultar alguma expressão capaz de traduzir a energia do que se vê na tela quando o foco está nas ações dos negros. Seu contraponto, as figuras do ministro e da funcionária pública, representando os movimentos do governo, são meras caricaturas.
Inspirado na peça “Namíbia, Não!” (olhe que título significativo), de Aldri Assunção (também ator do filme), o roteiro do próprio diretor e de Lusa Silvestre constrói trama poderosa.
“Medida Provisória” simboliza o grito político de maioria marginalizada (tida como minoria), sem jamais soar panfletário.
E seria fácil escorregar. Não faltam discursos nem palavras de ordem e tomadas contundentes de decisões, pois se está em guerra. O governo decide enviar os negros de volta para a África, na ambígua campanha “Repatriação Já”, como se a identidade do Brasil não estivesse impregnada dos afrodescendentes – do DNA ao amplo leque de significados da cultura.
As manifestações dos diversos personagens é uma repetição de questões presentes no dia-a-dia dos negros, alvos constantes de preconceitos. E um filme que pretende tocar a ferida sem medo dos enfrentamentos precisa, mesmo, usar todas as armas à disposição. Entretanto, não há palavras fora de lugar. Os diálogos são fortes, mas inescapáveis.
Tecnicamente, o diretor Lázaro Ramos parece repetir o que fazem os jovens diretores que tentam colocar no primeiro filme tudo o que aprenderam sobre o fazer cinema. E tome movimentos e posições pouco usuais da câmera ou câmera na mão determinando ritmo acelerado condizente com a encenação e luzes teatrais modificando cenários naturais.
Pois esse uso inusitado da câmera, a luz que gera belas fotos e o ritmo intenso da edição fazem parte da concepção do filme.
Não são adereços bonitos para enfeitá-lo ou virtuosismo. O filme pede, mesmo, algo além do lugar comum. A começar do fato de ser uma ficção futurista e inconcebível. Portanto, não há por que ser conservador ante uma trama tão inusitada.
Assim como o uso do humor, uma vez que o filme dialoga com “Faça a Coisa Certa” (1989) naquilo que Spike Lee aproveita de melhor ao falar do preconceito, que é a presença próxima de outras etnias. O japonês que entrega arma a André, o branco (de sobrenome Blanco), que pode não merecer confiança, mas cujo afeto está mergulhado no universo negro, ou a fala de Emicida de que “quilombo é muito século 18”.
E há bons complementos que, conjugados, fazem “Medida Provisória” alcançar o objetivo de ser um bom filme. Como a performance elogiável do ator britânico-brasileiro, Alfred Enoch (Antônio), de Tais Araújo (Capitu) e de Adriana Esteves (Isabel), além da citada fotografia, a luz, a direção de arte, a trilha oportuna se equilibrando entre alegre e tensa, como é, nas duas medidas, a música afro-brasileira.
Voltando ao título, “Medida Provisória” parece nome de peça do Brecht (Bertolt, 1898-1956). O dramaturgo e encenador alemão usava o distanciamento, técnica criada por ele, no qual toda a encenação deve prescindir da emoção para que o cérebro (e não o coração) entenda o que está sendo dito. Ele tem razões. O coração, movido por emoções, pode nos trair.
Mas é impossível não se comover com o encantador entusiasmo juvenil do caminho trilhado pelos heróis do filme. E há vislumbre de tempos melhores nas cenas paralelas do branco preso no Afrobunker e de André cercado pelos policiais na rua. E, por fim, há um grito eloquente de Antônio na sacada do prédio onde está refugiado reivindicando o Brasil, também, para si. Grito catártico, sem distanciamentos. E justo. Como deve ser.
PS. Perdoem-me trazer a crítica para o plano pessoal. Sou branquelo e nunca precisei reivindicar brasilidade. Mas minha avó paterna, Paulina, talvez precisasse, pois era cafuza, filha de negro com indígena. Então, em nome do sangue dela que trago nas veias, reivindico brasilidade a todas e todos que quiserem ser brasileiros. Os preconceituosos que procurem outras causas (se possível, nobres) sobre as quais debruçar.
Em Campinas, o filme está em cartaz no Cinemark do Shopping Iguatemi e no Kinoplex do Shopping D. Pedro
João Nunes é jornalista e crítico de cinema