Minha primeira paixão chamava-se Lígia. Tinha cabelos aloirados e olhos acastanhados. Ela sumiu da minha pequena vida, feito um raio de verão. E dela só tenho uma lembrança de uma festa em casa de parentes. Aniversário de alguém que não me lembro, um tio talvez. Mas bem me lembro dela cantando parabéns a você na ponta dos pés. E assim passei a me apaixonar pela vida quando uma bailarina dança e desafia a gravidade – e , é claro, pelas secretárias bancárias caminhando pelas calçadas com seus saltos altos e imponentes ombreiras carregando elegantes bolsas de couro. E isso digo sem falar das meias de nylon que usavam, com costura reta, quase um caminho para o pecado de um menino de quinze anos.
Caetano Veloso falou da deselegância das meninas paulistanas. E digo eu que Sampa é uma das melhores elegâncias poéticas dedicadas a São Paulo.
E nem a Bahia recebeu tanta distinção musical. E assim me ajusto com as coisas que já vi e vivi. E toda mulher, devo dizer, é elegante em si. Com ou sem roupa. E assim são as cidades, os bairros, as vilas, os povoados, ou o menor dos roçados. Tudo tem uma elegância natural, também digo eu, neto de um caipira que andava de terno branco, de linho 120, camisa branca e gravata azul – e sempre tirando o chapéu de palha para cumprimentar as pessoas que cruzavam o seu caminho. E assim aprendi e sempre aprendo quando recebo um cumprimento de um desconhecido. E assim cumprimento e sigo pela minha calçada.
Nada me custa honrar a herança do meu avô materno.
Do avô paterno não sei nada – apenas da minha avó Lucinda, grande amiga da minha mãe, uma senhorinha de mãos fortes e quentes, as primeiras que me guiaram pelas ruas de congada de Atibaia.
Setenta anos me separam de Atibaia. É o tempo que levei para conhecer Campinas e seus misteriosos interiores, suas vielas, a boemia, a difícil vida fácil de suas meninas (by Jorge Amado), a mesma das muitas moças brasileiras da Bahia, Sampa, Porto Alegre, Belô, Aracaju, Piauí, porque muito andei pelo país atrás de um sonho de conhecer o mundo. Madrid, Lisboa, Berlin, e nada era diferente do que já visto no Brasil, a mesma indiferença política e social, os mesmos apetites dos carniceiros moralistas e ideológicos.
Sem política, por favor!
Não quero nada dessa prosa. Apenas lembrar daquelas boas taquarais, o campinho de futebol, a lagoa, pescar lambari, cuidar da roupa no quarador, ajudar a mãe no trato do jardim, varrer a calçada, arrumar a cama, lavar a louça e pendurar a roupa no varal. Faço isso todos os dias. É uma coisa assim como respirar, um vício de sobreviver, um tentar seguir em frente com o que se tem. E assim venho acompanhado de lembranças e tocando a vida em frente, com as minhas palavras, com a minha garganta.
Sempre trabalhei pelo prazer do trabalho, dos companheiros que estavam ao meu lado, uns mais amigos, outros menos inimigos, visto que não dou direito a ninguém a se declarar meu inimigo. Ou bem explicando, eu sou o senhor das minhas escolhas e, portanto, escolho os meus inimigos. Tudo muito simples como um ninho de passarinho.
O tempo não me diz nada. E dele nada quero saber. E assim ando pelas ruas da minha cidade como um cidadão cheio de suspeitas, mentiras e verdades.
Todos os homens de boa consciência sabem de suas verdades e mentiras. Até mesmo o andarilho que sempre se ajoelha na escadaria da Igreja do Carmo, buscando a esmola da hipocrisia da fé. Nunca lhe dei nada além de um olhar solidário e, digamos, um sorriso acoitado na alma.
A cidade me dá paixão. E bem lhe agradeço pelo prazer de viver em suas ruas, praças e jardins suburbanos, pelos varais, das mães cansadas, dos pais cansados, e, é claro, dos filhos alegres que chegam de mais uma aventura de um dia que nunca termina, e que recomeça como sempre acontece com todas as manhãs brasileiras, plena de paixão pela vida.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico