Interessados em spoilers discordarão, mas o modo de contar uma história pode ser mais importante que a própria história. Conhecer ou desconhecer a trama e o destino dos personagens é (quase sempre) irrelevante. Sabemos de cor os passos de Romeu e Julieta, mas insistimos em ver montagens da peça por causa da brilhante escrita do autor e porque atrai-nos descobrir que releitura do velho texto fará o diretor.
Este princípio surge cristalino em A Filha Perdida (The Lost Daughter, EUA, 2021, 121 min.), bem-sucedida estreia da atriz norte-americana Maggie Gyllenhaal na direção. Intriga qual o significado da boneca desaparecida? Ou a razão daquela família em férias ser descrita como má, segundo Will (o irlandês Paul Mescal)? E quem é a filha perdida? E o que dizer do desfecho enigmático?
O roteiro dá pistas, mas não responde a nenhuma dessas questões; elas podem ser respondidas de acordo com o gosto interpretativo do espectador. E o filme seduz, precisamente, por esta razão.
Trata-se de ótima história, o que parece contradição com o princípio enunciado acima. Sim, pesa positivamente ter boa história em mãos, mas o diretor precisa ter talento para fazer a devida leitura. Não por acaso, há filmes de qualidade baseados em livros ruins e produções de poucos méritos que desperdiçam atraentes histórias.
O que Maggie soube agregar no modo dela de contar a história é a atmosfera de mistério. A começar da enigmática cena inicial. Em seguida, vem o encontro de Leda (Olivia Colman) com Lyle (Ed Harris), dono da casa na cidade grega onde ela passará férias. Há algo estranho no ar, que inicia com a insistência dele em contrariá-la e ligar o ar-condicionado do quarto.
O mesmo se dá com Will. A conversa durante um jantar é rica por conta de Leda, professora universitária de literatura comparada. Mas ele carrega um poço de mistérios. Se a tal família é má, por que ele se envolve com uma das integrantes dela? E por que sabemos tão pouco dele?
As questões só aumentam. Por que Nina (a norte-americana Dakota Johnson), mãe da garota que se perde, manifesta atração por Leda? Em dado momento, toca-lhe o rosto em gesto de evidente erotismo. E qual terá sido o destino de Bianca, filha de Leda, personagem de poucas cenas, mas onipresente?
Tais perguntas se espalham pelas diversas camadas que compõem o filme. E a falta de respostas acerca dos desfechos em nada atrapalha a narrativa, pelo contrário, agrega. Este é, afinal, o filme: mistérios que envolvem personagens instigantes.
Assim, torna-se mais relevante entender como se constrói a atmosfera de mistério, característica principal do filme, do que saber a sinopse. Começa no impecável roteiro da própria diretora a partir do livro homônimo de Elena Ferrante. Nem sempre o melhor roteiro nasce nas mãos do diretor; neste caso, Maggie tem domínio da narrativa porque concebeu o filme – aliás, ousada, criou final distinto do livro.
E as escolhas dela foram acertadíssimas: o olhar sobre a história e a ambientação e a encenação desde quando Leda chega ao lugar de veraneio – destaque para os mágicos instantes de observação e interação da personagem, na praia, que remetem a Gustav von Aschenbach, de “Morte em Veneza” (Luchino Visconti, 1971).
Maggie não tem domínio sobre a edição, mas o filme nos revela que o editor teve em mãos rico acervo de takes para trabalhar – fruto das escolhas dela. Por fim, a direção de atores, funções tratadas com segurança e esmero. E a diretora pode se sentir afortunada por ter em mãos elenco tão precioso, no qual brilham duas atrizes. A excepcional Olivia Colman fascina em cada olhar, gesto, expressão, pausa, movimento, respiro. Um prazer vê-la atuando – como se brincasse.
Como desperta prazer assistir à cantora irlandesa Jessie Buckley interpretar o difícil papel de Leda jovem porque, em tese, necessita criar a personagem e entregá-la a Olivia. E ela o faz com precisão, como na cena de apresentação do trabalho acadêmico: meticulosos movimentos construídos de filigranas (sutis olhares, esboço de sorrisos) que se tornam grandiosos.
Por trás de tudo, inquieta-nos a camada essencial do filme: a maternidade, geração da vida e particularidade feminina por excelência. Na natureza dela, trata-se de evento prosaico, mas de complexidade magnificente em seu significado amplo e inesgotável. Não surpreende que para abordar o tema de modo eficiente, o mistério tenha sido usado como artimanha.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
O filme está em exibição na Netflix