A primeira atriz negra a ganhar Oscar foi Hattie McDaniel, coadjuvante no filme E o Vento Levou (1940). Mas na cerimônia de entrega da estatueta, ela foi impedida de ficar ao lado dos colegas atores – sentou-se à uma mesa escondida no fundo da sala. Neste histórico domingo, 25 de abril de 2021, a sala não reunia tanta gente – assim como em 1940 –, mas havia tantos negros quanto brancos. E sentados juntos, sem segregação, e em lugares privilegiados na condição de nominados ou no palco, recebendo, entregando, apresentando o prêmio.
E não apenas negros. Houve espaço para muitas mulheres (da segunda a ganhar Oscar de direção, Chloé Zaho, às candidatas a atriz, figurino, canção etc), idosos (Anthony Hopkins, ator mais velho a receber a estatueta) e inúmeros imigrantes: dinamarqueses, turcos, chineses, coreano, britânicos, franceses e até brasileira (Alice Braga empresta a voz em animação da Disney).
Por tudo a que o precedeu, como resultado da pandemia, era de se esperar que tivéssemos uma cerimônia diferente. Mas o evento foi muito além da expectativa: o cenário da grande festa tinha sido modificado. No lugar da predominância de brancos, loiros de olhos azuis e verdes, a equivalência da cor da África mais que nunca tomando assentos na Casa Grande. E das mulheres e velhos e imigrantes.
Tomaram posse do que lhes era devido, arrombaram a festa, invadiram a praia, hastearam bandeiras e ergueram a voz em discursos longos, emocionados, humanos – discursos de quem está próximo, expressam nossa linguagem, falas desprovidas de formalidades, textos não ensaiados. Como o diretor dinamarquês Thomas Winterberg, que chorou a perda da filha, da atriz coreana Youn Yun-jung dotada de carisma e simplicidade comoventes, do americano Daniel Kaluuya, que agradeceu a Deus e a mãe emocionada na plateia, da britânica Emerald Fennell, que afirmou que ingleses não choram – mas o choro dela estava evidente no sorriso alegre. Parecia gente igual a gente.
Também houve dois prêmios humanitários com alcance para além da arte, que contemplou a entidade Motion Pictures & Television Fund e um programa dirigido pelo militante negro Tyler Perry, ambos convivendo com os efeitos da pandemia. Impossível não se comover ante os discursos dos respectivos representantes.
Em uma atividade que está entre as primeiras no topo dos setores mais rentáveis dos Estados Unidos, país conhecido pelo consumo e desperdício (tudo em excesso), e em meio a festa dedicada ao glamour, à riqueza, à superexposição e na qual desfilam artistas chamados (as) de estrelas para se manterem longe dos mortais falava-se em solidariedade, misericórdia, doação. Não sou ingênuo imaginando que os Estados Unidos mudaram o modo de ver o mundo. Eles sabem que a globalização aproximou os países e que territórios nunca antes explorados são campos férteis para gerar mais lucros e que um prêmio localizado (o da indústria americana, voltada para a América) perdeu a validade.
Hoje, o Oscar é de todos, pois, quanto mais países consumindo filmes, mais lucros terá a grande indústria, mas também porque existem talentos em qualquer parte, de Angola, ao Irã, passando pela China, Paraguai, Índia, Cazaquistão, Noruega, Itália, Islândia. Além disso, artistas e técnicos do planeta inteiro, agora, fazem parte da Academia de Artes e com direito a voto, influência, palpite e mão de obra. O que isso muda? Ganha-se oportunidades para exercitar a arte e dinheiro.
Quero acreditar que o mundo da pandemia está diferente daquele no qual vivíamos e que as mudanças serão ainda mais significativas.
Talvez, sim, exista um tanto de ingenuidade, mas a cerimônia do Oscar me fez pensar que talvez não haja mais como voltar atrás e que as transformações são irreversíveis. Quero pensar que essa vitrine de ostentação cresceu e deixou as coisas próprias de menino, que abandonou a exacerbação do luxo e da opulência, como se fossem deuses se lambuzando do fausto, para se tornar mais humana, e que se desfez da futilidade e vislumbrou a nobreza.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema