Estou na Presidência do Conselho de Curadores da Fundação Butantan e, é claro, tenho a curiosidade de ver como o Instituto Butantan, fundamental à saúde pública brasileira, continua a cuidar deste tema com responsabilidade e espírito público, apesar de, sequer ter os seus custos de desenvolvimento e produção cobertos pelo Ministério da Saúde através do SUS. O que picadas de cobra, tétano e raiva têm em comum?
O tratamento de pacientes com essas condições fatais depende de antissoros, uma classe de produtos ricos em imunoglobulina derivados do plasma de voluntários humanos ou animais e usados para imunização passiva após suspeita de exposição (ao tétano ou raiva) ou para atividade antiveneno após picadas de cobra.
A cada ano, cerca de 55.000 pessoas morrem de raiva e mais de 60.000 de tétano através do mundo, enquanto picadas de cobra matam entre 20.000 e 94.000 pessoas e levam a muitos mais casos de incapacidade permanente. Outro ponto em comum é que todos os três tipos de antissoros são extremamente difíceis de acessar na maioria dos países em desenvolvimento, devido a várias restrições que, em combinação, produzem uma espiral de negligência.
A fabricação desses produtos é relativamente cara e as vendas globais estão estagnadas, com lucros potenciais baixos ou inexistente — o que gradualmente levou vários grandes fabricantes a abandonar a produção. A retirada dessas empresas, por sua vez, exacerbou o problema, abrindo a porta para suprimentos instáveis, mais escassez e, dada a falta de regulamentação forte, uso de produtos abaixo do padrão. Novos antivenenos, feitos na América Latina, foram recentemente desenvolvidos para mercados africanos, mas devem ser testados mais profundamente para determinar precisamente sua eficácia clínica em diferentes locais.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou há cerca de 10 anos, uma reunião com vários produtores de antídotos para abordar a crise. Esta iniciativa ainda precisa ser traduzida em um plano de ação. Garantir o fornecimento contínuo destes medicamentos essenciais para envenenamentos (definido pela OMS como uma Doença Tropical Negligenciada, ou NTD) seria fundamental na luta contra as NTDs.
Mas esses problemas de fornecimento não se limitam aos antivenenos: pessoas expostas à raiva e ao tétano em países em desenvolvimento também estão quase completamente sem antissoros de qualidade garantida. O fornecimento global de imunoglobulinas humanas contra o tétano está em risco depois que uma big Pharma parou de fabricá-las há cerca de 10 anos.
Como um provedor de cuidados de saúde de emergência em regiões onde o tétano é prevalente, a Médicos Sem Fronteiras luta para obter quantidades suficientes de imunoglobulinas contra o tétano de qualidade garantida regularmente. Da mesma forma, embora a administração de imunoglobulinas antirrábicas (junto com a primeira dose da vacina antirrábica) seja recomendada para a maioria das mordidas de risco, o acesso é severamente limitado mesmo em países de renda média.
As causas subjacentes para o fornecimento errático desses produtos são uma mistura de obstáculos técnicos e desinteresse financeiro. A produção de imunoglobulinas humanas está (corretamente) sujeita a requisitos éticos rigorosos que limitam a capacidade de produção, e a fabricação de antivenenos é um processo intensivo em recursos e demorado . Além disso, os incentivos financeiros por trás desses produtos são fracos, considerando o pequeno mercado para eles em países ricos.
O resultado é que os preços reais são inacessíveis para países de baixa renda, onde a necessidade é, obviamente, maior.
As imunoglobulinas antirrábicas equinas custam US$ 25-50 por dose, e as imunoglobulinas antirrábicas humanas quatro vezes mais. Um único frasco do antiveneno africano polivalente pode custar mais de US$ 100. Embora o tratamento com antivenenos seja altamente custo-efetivo , esses preços, no entanto, representam enormes encargos para os ministérios da saúde em países pobres.
O que pode ser feito para reverter essa demanda? Um passo essencial é que os doadores financiem a implementação de um programa de garantia de qualidade da OMS ou OPAS que possa avaliar adequadamente se os antissoros disponíveis estão em conformidade com as normas e padrões estabelecidos para avaliar a eficácia, segurança e qualidade dos antivenenos de cobra e outros produtos derivados de soro animal. A maioria das autoridades reguladoras de medicamentos em países em desenvolvimento não pode conduzir sua própria avaliação, devido à falta de recursos.
Para os antivenenos, isso exigirá, entre outras coisas, o estabelecimento de bancos de referência de venenos contra os quais a eficácia dos antivenenos disponíveis seja testada regularmente. Ao mesmo tempo, um mecanismo para garantir disponibilidade e acessibilidade deve ser estabelecido, fornecendo antivenenos e imunoglobulinas gratuitamente para aqueles que não podem pagar. Iniciativas multibilionárias para imunização, têm um papel crítico a desempenhar para garantir o acesso a esses produtos.
Mais de um século depois que Emily von Behring e Albert Calmette experimentaram pela primeira vez a imunização passiva, os antissoros continuam sendo terapêuticas negligenciadas.
Na era da engenharia genética, esses produtos derivados do sangue podem parecer antiquados, mas são tão essenciais agora quanto eram há 100 anos.
Carmino Antônio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan, Conselheiro e vice-presidente da Fapesp e Pesquisador Responsável pelo CEPID- CancerThera- Fapesp. Atual Diretor-Científico da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH – AMB)