No último dia oito de outubro, participei a convite do Instituto “Lado a Lado pela Vida” do Global Forum – Fronteiras da Saúde para discutir um tema provocativo e polêmico cujo título era o seguinte: “O custo da saúde nos sistemas público e privado: precisamos mesmo ter dois mundos tão diferentes?” Na tntrodução feita pelo moderador haviam as seguintes premissas: “Segundo a OMS, os governos federais fornecem, em média, 51% dos gastos com saúde de um país enquanto 35% são pagãos pelos habitantes. O Brasil gasta 8% de seu PIB em saúde, dos quais 4,4% vêm dos gastos privados e 3,8%, de gastos públicos. Portanto, por mais que o país forneça um sistema universal de saúde a seus cidadãos, a maior parte do dinheiro ainda é proveniente de gastos privados”.
Eu começaria dizendo que concordo com a premissa de que faltam recursos para a saúde pública e que o governo federal vem gradualmente se retirando do financiamento e transferindo esta responsabilidade aos entes subnacionais, isto é, aos Estados e Municípios. Até hoje, após 30 anos da Constituição Federal que criou o SUS, não se fixou um percentual mínimo de alocação de recursos pelo governo federal, mesmo já tendo passado vários governos, de várias tendências políticas, sem que isto se resolvesse.
Na grande maioria dos países, os recursos para a saúde são alocados, principalmente, pelo governo central. Aos municípios, por exemplo, cabe a governança, zeladoria, atenção primária e urgência/emergência (em grandes municípios, apenas).
A participação federal no financiamento do SUS caiu de cerca de 70% para menos de 30% neste período. Entretanto, este tema é muito mais amplo e complexo do que apenas dinheiro. Eu sempre digo e discuto com meus colegas e colaboradores de que não podemos iniciar qualquer debate pelos recursos. Isto empobrece a discussão, “dinheiro é meio e não fim”. Assim, vou elencar alguns fatores fundamentais à dificuldade de gestão da saúde bem como algumas ideias para melhorar a utilização dos recursos.
Como está amplamente demonstrado, os custos da saúde são crescentes e a inflação da saúde é sistematicamente superior a inflação geral. O SUS opera através das pactuações entre os três entes federados e em vários níveis onde novos procedimentos, fármacos, exames, etc. são incorporados. Para que isto ocorra de maneira adequada e viável, há necessidade de que as políticas públicas sejam baseadas na ciência, ciência com dados maduros e amplamente confirmados. Devemos ter sempre o conceito da essencialidade do atendimento para garantir o mínimo suficiente e adequado aos cidadãos, preconizado e divulgado pela OMS (por exemplo, os fármacos oncológicos).
Devemos sempre tratar a exceção como exceção e, se possível, administrativamente, evitando a judicialização. O sistema de pagamentos do SUS (Ministério da Saúde) deve ser completamente revisto e isto é uma decisão política. O SUS deve promover, como em sua origem, uma ampla contratualização do sistema, incluindo os serviços e os programas, deixando de lado sistemas antigos e superados de financiamento como, por exemplo, a utilização das APACs (remanescentes do extinto Inamps). É impossível ajustar este sistema que se transformou em uma “colcha de retalhos”. O sistema deve ter o máximo de transparência para que a sociedade possa acompanhar a sua evolução.
Sabemos que em todos os países do mundo há algum grau de desperdício na gestão da saúde. Em sua grande maioria, isto está em torno de 10%. Vários fatores são responsáveis pelas perdas e cada gestor deve avaliar dentro de seu espectro de responsabilidade onde estão estes problemas e como corrigi-los. Ter dois sistemas de saúde não é, a meu ver, um problema. Muitos países têm e funcionam bem. Porém, estes sistemas devem ser harmonizados. Sabemos que o SUS vai muito além da assistência médica. O SUS engloba atividades de estado como a vigilância em saúde, programas especiais de grande qualidade e impacto social (sangue, transplantes, HIV, regulação de serviços, PNi etc.), atenção primária em todos os mais de 5 mil municípios (mesmo em regiões distantes e de difícil acesso) dentre muitas outras ações.
Minha experiência é que esta complementariedade é sempre possível, mas deve ser promovida pelo gestor público dentro das necessidades de sua população.
Na pandemia do SarsCov2, ficou claro que estes sistemas podem ser solidários e, realmente, complementares. Devemos lembrar que o Brasil é um país imenso, continental, heterogêneo e muito desigual. A “SUS dependência” é muito variável. Temos percentual de dependência em torno de 50% nos grandes centros (principalmente na assistência médica) crescendo até 100% nas cidades do Interior e de menor porte e em todos os estados brasileiros, sem exceção.
Algumas atividades, como a vigilância em saúde, este percentual é de 100% para todos. Nas vacinas e nos transplantes, para dar exemplos extremos de complexidade, este percentual é superior a 90%. Importante, ainda, é criarmos instâncias regionais e/ou metropolitanas de gestão do SUS para respeitar e decidir dentro das várias realidades do País.
Finalmente, não devemos esquecer da educação em saúde para o SUS e sistema complementar. Nossos jovens profissionais devem conhecer a realidade social onde exercerão seu trabalho para lutar por um constante aperfeiçoamento do bem-estar de nossa população. Recursos são fundamentais, mas devemos saber o que fazer com eles.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020.