Na França, de 1963, abortar era considerado crime, como mostra “O Acontecimento” (L’Evénement, França, 2021, 100 min.,16 anos), da cineasta francesa de origem libanesa, Audrey Diwan. Hoje, no país governado por Emmanuel Macron, permite-se o procedimento desde que a gravidez não ultrapasse 14 semanas.
A relevância do tema está no fato de a história se passar cerca de 60 anos atrás e continuar atualíssimo: no direito (caso da juíza que descumpriu a lei que o permite em caso de estupro), na política (nas manifestações de candidatos nas eleições de outubro) e no cotidiano de todos nós porque, afinal, ele está conectado com a vida.
Vencedor do Leão de Ouro, em 2021, em Veneza, um dos mais importantes festivais de cinema do mundo, o filme se baseia no livro homônimo da escritora francesa, Annie Ernaux.
Fica evidente, desde o início, a proposta da direção, a partir do roteiro adaptado por ela (com Marcia Romano), em colocar Anne (Anamaria Vartolomei), sempre, em primeiro plano, a fim de mostrá-la sob todos os ângulos, ações e situações.
Claro, é a protagonista, mas há outro propósito: a diretora quer chamar a atenção do espectador para a personagem que tem alma e tem corpo. A constatação parece óbvia, mas não.
Alma, refere-se à pessoa preparada intelectualmente (em aula da universidade responde com classe a arguição a respeito de um poema), que tem desejos (faz sexo com sujeito que mal conheceu), é inteligente (estuda consciente do que pretende ser na vida), tem desígnios próprios (ninguém lhe impõe decisões) e não se faz de vítima (quando precisa de dinheiro, vende objetos pessoais).
E, corpo, a representação física dessa alma, mas não com a intenção de explorá-lo eroticamente; porém, a fim ressaltá-lo como ser humano nas mesmas condições que sempre foram dadas ao ser masculino, ou seja, a de dona do próprio corpo.
Assim, vemos Anne desnuda no banho, na relação sexual e na consulta com o médico Ravinsky (Fabricio Rongione) e, naturalmente, vestida, nas aulas da universidade, com os pais, com as amigas, dançando, viajando. Trata-se de um corpo livre (que vive de poucos prazeres e muitas dores) capacitado para dizer sim ou não, sempre que esteja em sintonia com as próprias vontades.
Só que para alcançar a plena liberdade há um preço: ficar grávida e não obter apoio do parceiro Maxime (Julien Frison), encarar tarefa de optar entre ter o filho e seguir carreira profissional, e guardar o segredo que não pode ser compartilhado com colegas, professor e pais. Liberdade, portanto, como sinônimo de solidão – sentimento manifestado por ela própria.
Para isso, Anne mune-se de determinação. Contudo, na hora mais dramática, entrega-se à fragilidade, conta com ajuda de alguém, busca suporte nos pais simplórios, que, mesmo pouco afáveis e distantes, são capazes de arrancar o único sorriso dela – instante delicado para o qual cabe música doce a encorajadora.
E faz sentido citar a referida música (em história narrada de forma seca e silenciosa e sem apoio de melodias que costumam embalar sonhos) porque a precisa trilha de Evgueni Galperine, Sacha Galperine remete a filmes de terror: sons rascantes, duros e tensos.
Não é fácil encarar o aborto. Nem mesmo falar sobre ele e expor opiniões ou estabelecer verdades irremovíveis – por acaso, alguém se interessa por nossa opinião, seja ela qual for?
Religiosos dirão que são contra; pessoas iguais a Anne, que são um tanto mais arejadas, se colocarão a favor. E não se pode esquecer a ética. Tampouco os sentimentos que vão além de princípios racionais – aqueles conectados com a espiritualidade.
O que “O Acontecimento” cumpre com segurança é a capacidade da direção em compor essa narrativa com força capaz de mobilizar nossos conceitos e teorias, e nos colocar emocionalmente conectados com a experiência de Anne.
Capacidade na concepção, nas escolhas e na forma de apresentá-las com fundamentos técnicos que complementam convenientemente a narrativa, como a bela edição de Géraldine Mangenot e a fotografia austera de Laurent Tangy. E, antes de tudo, coragem para defender a liberdade humana, seja ela do homem ou a da mulher.
O filme estreia nesta quinta-feira, dia 7 de julho, nos cinemas
João Nunes é jornalista e crítico de cinema