Chegados os 100 primeiros dias do governo Lula, a realidade confronta as expectativas que marcaram a acirrada disputa democrática cujo emblema foi a polarização entre o discurso moralista de ódio e medo do candidato derrotado e a abordagem conciliatória de amor e esperança do presidente eleito.
Deixando a publicidade eleitoreira de lado, ainda considerando o poder que a propaganda tem sobre a vida das pessoas e a forma como percebem a realidade, é necessário destacar que a guerra híbrida segue presente no cotidiano do povo brasileiro, observada na recorrência de violências estruturais, como nos casos de feminicídio, exploração de trabalho análogo à escravidão, racismo, miséria e fome, mas, também, nas proporções cada vez maiores que vêm ganhando atentados contra escolas e manifestações explícitas de culto ao nazismo, ao fascismo e à defesa do ódio como liberdade de expressão – principalmente sob as lentes sensacionalistas, tendenciosas e enganosas das redes sociais.
Esse cenário dramático não surgiu no governo Bolsonaro, mas ganhou espaço e legitimidade tanto pela omissão do Estado em prevenir e combater a violência, quanto pela postura imoral e irresponsável de lideranças que, para agradar currais eleitorais, se revestiram do discurso de ódio para ganhar o apoio de grupos que, diante de frustrações pessoais e coletivas nos últimos anos, se tornaram alvo fácil para manobras de controle e mobilização de massas populares.
As perspectivas sobre o futuro se tornam cada vez mais pessimistas diante de crises econômicas persistentes, desmonte de garantias sociais e direitos trabalhistas, restrições impostas tanto pela pandemia quanto pelo desemprego e endividamento da população, fazendo transbordar a insatisfação e a indignação no desejo reacionário de mudança. A pergunta importante é: quais mudanças?
Nos últimos anos, em vários países do mundo, incluindo o Brasil, vimos crescer a defesa dessa mudança fantasiada pela reconquista de um falso passado glorioso, escorado em intolerância, fanatismos e extremismos – nos mesmos moldes do nazismo e do fascismo no começo do século passado. Na carência de apoio familiar e com a precarização de espaços públicos voltados à construção democrática do conhecimento, como as Escolas, a juventude tem ficado cada vez mais exposta e vulnerável a ideologias extremistas que, sem fiscalização e moderação nos ambientes virtuais, disseminam o medo e o terror, fomentando a prática de atentados e instruindo sobre como realizá-los. A facilidade de acesso a armas de fogo e a banalização da violência, seja pelo fundamentalismo religioso, pela abordagem sensacionalista da imprensa ou a espetacularização do tema em jogos realistas, agrava consideravelmente esse cenário.
De nada adianta, todavia, negar ou ignorar essa gigantesca bomba de ressentimentos, rancor, revanchismo, infelicidade e descontentamento que aflige a população. Paulo Galo, liderança entre os Entregadores Antifascistas, seguindo a filósofa contemporânea Djamila Ribeiro e pensadores revolucionários do século XIX, como Errico Malatesta, e XX, como Frantz Fanon, considera que, para haver resistência à violência estrutural e mudanças consideráveis nas macroestruturas sociais, é preciso organizar o ódio.
Não se trata de alimentá-lo ou mesmo estimulá-lo, mas compreender sua origem e direcionar os sentimentos que o produzem a uma finalidade diferente da guerra pela guerra ou, ainda, da guerra entre os explorados que garante a manutenção dos privilégios e a paz somente entre os exploradores.
Do ponto de vista pragmático, toda guerra é movida pelo ódio contra determinado alvo. Mas quem determina esse alvo? Durante a guerra contra o Vietnã, na década de 1960, o campeão olímpico e ativista estadunidense Muhammad Ali se recusou a servir ao exército dos EUA por considerar que os inimigos, de fato, do povo negro norte-americano não eram os vietnamitas, mas os grupos racistas de seu próprio país, presentes no governo e nas forças armadas, inclusive.
No Brasil, repetir sistematicamente mantras como “mais amor, por favor”, “sem violência” ou “faz o L” não passa de manifestação simbólica da superficialidade com que temos tratado temas sérios, complexos, determinantes da nossa forma de conviver em sociedade. Organizar o ódio com autonomia de pensamento e senso crítico, com consciência de classe, solidariedade e respeito à diversidade e à vida de todas as pessoas é o oposto de deixá-lo ser usado para disseminar o caos, a violência generalizada e a destruição dos tecidos democráticos.
É assumir um papel participativo no combate às práticas que deterioram o convívio harmonioso e a cidadania, a começar pela erradicação das fake news, fundamentalismos, negacionismos e práticas de intolerância e desonestidade.
Recolocar em destaque pautas urgentes, como a reforma agrária, a universalização do acesso a moradia, educação e saúde, a geração de empregos dignos com salários justos para superação da pobreza, da exploração e ascensão socioeconômica, bem como acolhimento e proteção de pessoas vulneráveis, seja nos centros urbanos, no campo, nas florestas, e o enfrentamento da corrupção e da criminalidade no termos da Lei, priorizando medidas preventivas e estratégias mais reabilitadoras do que apenas punitivas.
O amor só vai vencer quando o ódio já não for mais necessário para mobilizar as massas, finalmente substituído pela compreensão acerca da coletividade, da consciência e do respeito diante das diferenças e divergências, da colaboração e da generosidade ao invés da competição e da vaidade. Até lá, que essa utopia seja bússola no horizonte a ser construído e alcançado, mesmo durante as mais longas tempestades.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.