O veterano ator, roteirista e diretor Michel Blanc é o protagonista e domina a cena em O Bom Doutor (Docteur?, França, 2019, 90 min.), de Tristan Séguéla. Domina até a entrada do comediante e youtuber Hakim Jemili, com quem terá de dividir espaço. Bom para o espectador que tem a chance de assistir ao lúdico embate entre o artista de larga experiência e o jovem talentoso.
Impressiona a performance dos dois atores em um jogo de interpretação que parece fácil (mas não é), como as antigas e famosas duplas do futebol. Um olhar, um aceno, um gesto. Pronto: cena está resolvida. Claro que existe a mão do condutor, que dá vida cênica a esse jogo a partir dos roteiristas (Jim Birmant e o próprio diretor) que o conceberam. É assim que nascem bons filmes.
Veja o trailer no link https://www.youtube.com/watch?v=qSQOlEK-Nfk
O Bom Doutor pode ser definido como simpático conto de Natal que tem na simplicidade a característica principal, pois se trata de história sem grandes alternâncias e edificada a partir de situações inusitadas, que, às vezes pendem para o drama, outras vezes para o humor. Trabalhar com um roteiro dessa natureza e tornar o resultado final efetivo, eis o mérito do filme.
Ele não tem a pretensão de ser grandioso nem de se concentrar em temas eloquentes ou entrar para a história do cinema mundial. O único objetivo é sensibilizar o espectador.
Daí a necessidade da presença dos dois bons atores que estão, praticamente, o tempo todo em cena. Daí a boa direção, a fotografia difícil de Frédéric Noirhomme, escura ou na penumbra, porque toda a trama acontece durante a noite.
E, ademais, são situações nas quais as pessoas estão enfermas, atendidas pelo médico em casa, nos hospitais e nas ambulâncias, ou que contemplam a solidão de um médico de plantão se locomovendo pelas ruas noturnas e desertas de Paris – uma vez que a maioria da população está trancada em casa se empanturrando da comida do Natal.
E Serge Mamou-Mani é um velho médico cansado de guerra, capaz de dormir durante a consulta, tratar de modo grosseiro a um bebê, na divertida sequência inicial, ou ser indiferente com o sofrimento alheio em um momento tão sensível como encarar a enfermidade.
Ocorre que ele também passou por maus bocados na vida. Não justifica, mas explica por que tamanho distanciamento dos doentes. Foi durante o Natal, seis anos antes, que uma tragédia se abateu sobre a vida dele. Portanto, a data lhe traz más lembranças e ainda tem de trabalhar de plantão.
Malek Aknoun, entregador de comida, é pobre, usa bicicleta alugada do serviço público para trabalhar e, igualmente, está longe das festas familiares, tendo de ralar em plena noite de Natal.
O encontro casual de ambos obedecerá as velhas tramas entre o velho e jovem, o sujeito mal-humorado e cara otimista, um desastrado porque está ansioso e triste, outro porque a natureza o fez assim. Do manjado desconforto inicial à amizade e ao envolvimento profissional, será um pulo.
Mamou-Mani atropela Malek e, machucado, não poderá continuar atendendo. No entanto, os prováveis substitutos dele estão em viagem das festas de fim de ano e as chamadas da atendente do hospital não param de chegar. A solução absurda será transformar um entregador de comida em médico.
O filme se construirá, portanto, do absurdo. Nada que não tenhamos visto antes do cinema: confusões de todas as naturezas, sustos e situações limites e, apesar das tensões, tudo levado com o devido humor, como pede a comédia ou o conto de Natal. Sim, porque o roteiro aproveita a data para dar aquele toque que sempre nos comove, como reconciliações, mudanças de perspectivas, sonhos que renascem.
A vida tem sido dura para todos nós, mas para quem se faz receptivo, o despretensioso O Bom Doutor embute um poder que nem sempre permitimos aflorar: ele não desmente a complexidade da vida, mas nos lembra que ela também é simples. E simplicidade pode estar na arte de domar instintos autodestruidores e encarar a jornada do dia-a-dia com mais leveza.
O Bom Doutor estreia dia 9 de setembro nos cinemas.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema