Final de ano é sempre momento para retrospectivas que servem para validar ou questionar previsões feitas (refeitas e desfeitas também) por gurus, futurólogos e especuladores tentando, nos moldes de 1984, de George Orwell, moldar o futuro através da manipulação do passado. A análise crítico-reflexiva sobre o que passou, todavia, é crucial para orientar ações que antecedem os acontecimentos que almejamos.
De olho nos fatos econômicos, políticos e sociais que marcaram 2023, é inevitável reconhecer os enormes avanços conquistados pelo Brasil depois de um dos piores governos da história do país, à medida que os estragos causados pela pandemia da Covid-19 começam a ser, finalmente, revertidos e acordos multilaterais pendem a balança de poder do mundo cada vez mais em direção ao Sul Global.
Não há dúvidas, entretanto, do gigantesco preço que o terceiro mandato de Lula está tendo que pagar para alcançar alguns de seus objetivos.
O presidencialismo de coalizão confirma-se, com cada vez menos pudor, na consolidação do antidemocrático balcão de negócios que drena recursos públicos para satisfazer o famigerado apetite das bancadas que controlam o Congresso – em especial o empresariado, o agronegócio e os fundamentalistas, tanto do militarismo quanto da religiosidade.
Bilhões de reais destinados a emendas parlamentares e fundos partidários injustificáveis que servem para comprar e controlar currais eleitorais (que vão financiar campanhas para eleger prefeitos e vereadores ano que vem), além de financiar narcomilícias e empresas de fachada que usurpam de recursos que deveriam financiar serviços públicos ligados a educação, saúde, segurança, habitação, pesquisa, transportes, cultura e qualidade de vida. A herança colonial-patrimonialista de épocas e governos anteriores atravessou mais um ano fortalecendo-se ao invés de ser finalmente erradicada.
Embora as taxas de desemprego tenham caído consideravelmente, o emprego informal continua ditando como regra a precarização das relações de trabalho, enquanto a educação segue sendo menosprezada, substituída pela lógica do empreendedorismo fajuto que apresenta ao século XXI uma meritocracia repaginada pelo discurso motivacional que infesta as redes sociais, trafegando pelos smartphones em meio a fake news, discurso de ódio e entretenimento vazio.
De volta às 10 maiores economias do mundo (éramos a 6ª em 2014), no cenário internacional o Brasil voltou a ocupar o espaço de credibilidade e prestígio alcançado anos antes da atuação vergonhosa do mandato anterior. Lula referendou a posição diplomática do Brasil em defesa da democracia, do diálogo e da busca pela paz e pelo bom senso diante de guerras como a que se arrasta entre Rússia e Ucrânia e o genocídio contra Gaza, promovido por Israel no combate ao Hamas.
Sem se submeter ao militarismo selvagem e à política imperialista, seja dos EUA, seja da Rússia, a postura do Brasil tem sido decisiva para a ONU pressionar potências nucleares que lucram com a guerra a recuar, ainda que discretamente, diante de massacres contra civis, incluindo crianças.
Às margens da Amazônia, uma escalada armada entre os planos autoritários de Nicolás Maduro, da Venezuela, em invadir e tomar a província de Essequibo do país vizinho, a Guiana, foi abrandada pela interlocução do Itamaraty e o apelo do presidente do Brasil ao bom senso para evitar que a América do Sul sucumba, uma vez mais, às doutrinas intervencionistas do pretensioso bom-mocismo estadunidense.
Liderança no MERCOSUL, alavanca sul-americana do BRICS, agora em expansão, a relevância global do Brasil entre potências emergentes nos coloca ao lado de gigantes como China e Índia. Da mesma forma, expõe os graves contrastes socioeconômicos e as violências estruturais que ainda afligem nosso país, especialmente contra populações marginalizadas, flageladas pela pobreza, pela desigualdade de oportunidades e pela militarização do crime organizado.
Na direção oposta do fortalecimento regional em busca de autonomia, soberania e autodeterminação das nações latino-americanas, a Argentina comandada pelo extremista Javier Milei ameaça desestabilizar (ainda mais) a construção de democracias sociais populares, compromissadas com a erradicação da miséria através da justiça social.
O desprezo pelas agendas socioambientais e ecológicas, lamentavelmente, é um ponto de alinhamento compulsório entre os vizinhos, seja do sul ou do norte, e do Brasil.
Embora haja vozes comprometidas com a proteção e preservação ambiental no Brasil, como Marina Silva, Sônia Guajajara e Célia Xakriaba, a agenda ruralista segue ditando políticas que colocam em risco não só a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, o Pantanal e a rica biodiversidade brasileira, mas também as populações que dependem do equilíbrio ecológico para sobreviver, como povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e quilombolas.
O avanço do Marco Temporal, o colapso ambiental decorrente de mais de uma década de negligência da Braskem em Maceió e as novas frentes de exploração de petróleo na costa equatorial ilustram o descompasso entre a prática e o discurso da plataforma de governo articulada por Lula. Somam-se a isso as maiores temperaturas já registradas no centro-oeste e sudeste do Brasil, a escassez de água no norte e as tempestades no sul – evidências muito contundentes das consequências dos desequilíbrios climáticos provocados pela predatória exploração de recursos naturais em escala planetária.
Na busca pelas metas fiscais e o controle das contas públicas, Fernando Haddad, não por acaso, tem agradado o tal “mercado” e os bilionários que o manipulam. O fluxo de investimentos no país aumentou significativamente, o valor do dólar tem baixado, contrariando previsões pessimistas, o PIB vem crescendo acima das expectativas, a balança comercial mantém-se superavitária, o preço dos alimentos tem caído de forma consistente, e o IBOVESPA atingiu sua máxima histórica recentemente.
Evidente que os resultados macroeconômicos estão relacionados com a retomada econômica global e com o controle que o “centrão” fisiologista exerce sobre as decisões do poder Executivo.
Ainda assim, a Reforma Tributária representa vitórias parciais do que ainda restam de políticas mais à esquerda da base governista, assim como a retomada e ampliação de programas de acesso a renda e moradia, renegociação de dívidas e investimentos em educação, pesquisa, ciência e tecnologias. Estragos feitos pelas Reformas Previdenciária e Trabalhista, assim como pelo Novo Ensino Médio, contudo, não foram desfeitos. No Supremo Tribunal Federal, o domínio masculino reafirmou-se com a nomeação de Flávio Dino à vaga ocupada por Rosa Weber. Haverá, ano que vem, apenas uma mulher compondo o STF. E um autodeclarado comunista.
Já não há mais lunáticos desfilando em frente aos quartéis clamando por golpe e intervenção militar (ou alienígena), mas os crimes virtuais ganharam espaço entre jogos de aposta, golpes envolvendo criptomoedas, monetização de notícias falsas, sensacionalismo obsceno e discurso de ódio.
A regulamentação das redes sociais foi alijada dos debates centrais, satisfazendo o desejo das big-techs como Google, Meta e X (antigo Twitter), que continuam lucrando fortunas com a terra-sem-lei em que se converteu o ciberespaço. No mundo real, episódios trágicos envolvendo linchamentos, ataques a escolas e suicídios tornam-se mais frequentes.
As armas de fogo, cujo acesso foi descaradamente facilitado por políticas fascistóides, continuam circulando entre civis que fazem a ponte com o crime organizado, agravando e estado de guerrilha entre facções criminosas, o Estado e a população, sobretudo de pele preta e menor poder aquisitivo, alvos frequentes de balas que dizem ser perdidas.
O clima que se aproxima da chegada de 2024 é, definitivamente, mais otimista, mais humano, mais alegre. Libertou-se, ainda que parcialmente, da atmosfera de tensão e medo que sustentou as necropolíticas do bolsonarismo nos últimos anos, mas que continua rondando, buscando oportunidades de insuflar o caos e o fanatismo usados para legitimar a intolerância, o autoritarismo e o individualismo antidemocrático.
O ano de 2023 devolveu parte da esperança ao povo brasileiro, comprovando que a vontade política é muito mais determinante do que a mão invisível do mercado e outros fantasmas usados para assustar adultos.
Vem comprovando, também, que não há salvador ou herói da pátria, muito menos político que honre seus compromissos sem que haja cobrança, fiscalização e envolvimento da população em seu pleito, seja através de movimentos sociais, da iniciativa privada ou de organizações da sociedade civil em sua ampla diversidade.
Para 2024, o voto não deve ser o de que o Brasil “volte” para onde quer que seja, mas de que, superados os retrocessos que se acumularam desde o golpe de 2015, avance para lugares até então inexplorados, inexistentes. Construir e materializar as utopias que não são feitas de demagogia e ambições megalomaníacas, mas que emergem das urgentes necessidades do povo, como acabar com a fome e a pobreza, organizando e mobilizando forças que sempre foram e continuam sendo os alicerces civilizatórios de qualquer país – a honestidade, o trabalho digno, a criatividade, a solidariedade e a autonomia responsável por determinar os rumos que o ano novo irá trazer.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em Linguagens, Mídia e Arte