Pena um ator tão bom como Chadwick Boseman, destaque de A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom, EUA, 1h34 min.), de George C. Wolfe, ser lembrado na cerimônia do Oscar com indicação póstuma – ele morreu, aos 43 anos, vitimado por um câncer em agosto do ano passado. O filme recebeu cinco indicações. A festa de entrega das estatuetas está marcada para 25 de abril.
Chadwick brilha no papel do talentoso trompetista Levee da banda da cantora de blues Ma Rainey (Viola Davis), na Chicago do final dos anos 1920. Ele compõe, improvisa e tenta implementar um estilo mais moderno (dançante) ao ritmo das músicas da cantora. Mas o conflito se estabelece não apenas por causa da divergência de conceitos musicais, mas também porque disputam a atenção amorosa/sexual da mesma mulher. Há, portanto uma tripla disputa porque, além disso, ambos chamam para si a atenção no quesito performance.
Chadwick interpreta o jovem impetuoso que não teme oferecer o peito aberto (machucado, literalmente, no passado) sem qualquer proteção. Ele é ousado, briguento, enfrenta os problemas de frente e guarda muitas mágoas. Levee ataca para se defender. A grande e tímida Viola Davis parece um vulcão pronto para lançar lavas para todos os lados. Segura do talento de grande cantora de blues, faz valer suas vontades sobre empresários brancos e os humilha quando pode. E, assim como Levee, se impõe sobre o adversário para não ser engolido por ele.
O problema de A Voz Suprema do Blues está na estrutura narrativa. Adaptada da peça teatral de August Wilson, o roteiro de Ruben Santiago-Hudson leva para a tela princípios da linguagem teatral.
O teatro não tem compromissos com o realismo. Se colocar quatro instrumentistas em uma sala de ensaio e, enquanto conversam sobre música, contam histórias, está perfeitamente adequado para o teatro. No cinema, essa estrutura não funciona. Assim, o filme vive de pequenos monólogos e a maior parte do tempo os atores estão confinados a um ambiente fechado – como se estivessem na caixa fechada do palco. Sem dúvida, são esses os momentos que Chadwick e Viola aproveitam para brilhar – mas este brilho sobressai no formato teatral; porém, estamos no cinema.
Há outra questão relevante para um filme musical: fala-se muito sobre música (ensaios, estilo, gravações, shows), mas há pouquíssima música. E, sem dúvida, valeria muito explorar melhor o repertório de Ma Rainey (1886-1939). Porém, o longa funciona muito bem como plataforma de denúncia de como os negros eram vistos (e tratados) pelos brancos e a reação deles em relação a esse tratamento. Naquele momento, são mundos desiguais – um abismo os separa. Mas o desfecho da história prova a subserviência a que os negros eram submetidos. Ma Rainey ainda se impõe porque tem armas para tanto. Levee, no entanto, sente na carne, o poder exercido pelo branco.
Veja o trailer. Clique no link https://www.youtube.com/embed/HkRE1vBs-lY
Não seria demais premiar Anthony Hopkins pela grandiosidade da carreira e performances durante décadas e que praticamente se completa com o exuberante trabalho em Meu Pai (Florian Zeller) – ele tem 83 anos e, dificilmente, tenha outra chance de conquistar merecidamente um segundo Oscar. E não seria demais entregar a estatueta a Chadwick Boseman. Não porque seja negro, porque está morto ou pelo sucesso de Pantera Negra (Ryan Coogler, 2018) e, sim, pelo enorme talento demonstrado A Voz Suprema do Blues. O Oscar não costuma ser generoso com premiados – houve muitas injustiças ao longo da história. Eis uma chance de reparar erros: Oscar duplo de ator para Anthony Hopkins e Chadwick Boseman. Será injusto que apenas um deles leve o prêmio.
Disponível na Netflix. Não recomendado para menores de 16 anos.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema