Desde o surgimento da internet, ainda na década de 1960, como uma rede de comunicação militar em meio à guerra fria, imensos avanços permitiram que a rede online se tornasse um meio global de interação e compartilhamento de informações. Paralelamente, a inteligência artificial (IA) emergiu como um campo de estudo focado em criar sistemas capazes de realizar tarefas que simulam a inteligência humana. A combinação dessas tecnologias tem revolucionado as formas de interação humana na era informacional, cada vez mais corrompida pelo imediatismo e individualismo.
Com a progressiva transferência das relações e interações humanas para o ambiente virtual, torna-se cada vez mais frequente o uso dos chatbots de IA, como o ChatGPT, por pessoas que buscam algum tipo de acolhimento ou suporte emocional diante de crises de ansiedade, depressão, estresse, solidão e angústia.
O fácil acesso e a rapidez das respostas trazidas nas telas são vistas como alternativas viáveis e soluções milagrosas para lidar com questões complexas, ao passo que o tempo para autocuidado, descanso e lazer torna-se cada vez mais escasso e as interações humanas profundas são substituídas por comandos rápidos e utilitários.
A desumanização das relações afetivas responde a uma demanda da lógica neoliberal em um cenário onde as conexões autênticas se tornam cada vez mais raras. Todavia, a ilusão de disponibilidade imediata, anonimato e emulação de afeto e atenção dos simuladores precisa ser vista como realmente é: uma ilusão.
A modernidade líquida da era informacional é marcada pela fluidez e volatilidade das relações humanas. Segundo Zygmunt Bauman, os laços entre as pessoas se tornaram frágeis e temporários, e a busca por gratificação instantânea tomou o lugar do esforço para construir conexões profundas. O uso de chatbots de I.A. é um reflexo claro dessa lógica: as pessoas preferem soluções rápidas e genéricas para seus problemas, ao invés de se voltarem para si mesmas num processo reflexivo de autoconhecimento e interação com pessoas complexas.
Manuel Castells ensina que, nas sociedades reticulares, o mundo moderno é estruturado em redes, onde as interações ocorrem em um fluxo constante de informação e conectividade, mas sem necessariamente criar laços autênticos entre as pessoas. As relações são mediadas por dispositivos digitais que priorizam a circulação de dados ao invés da construção de sentidos e significados, o que agrava uma sensação de vazio e solidão, mesmo em um ambiente hiperconectado.
Instrumentalizadas pela cartilha neoliberal, as redes são inundadas por um utilitarismo disfarçado, onde a conectividade e a personalização dos serviços tecnológicos escondem a exploração socioeconômica, com dados sendo utilizados para manipulação comercial e política, reforçando desigualdades sociais enquanto prometem facilidade e conveniência.
As ferramentas interativas de inteligência artificial, amplamente anunciadas como dispositivos criados para facilitar a vida humana, estão cada vez mais sendo utilizadas para fins perversos de controle e manipulação das massas.
As plataformas de redes sociais e as interações mediadas por IA não são apenas uma extensão da realidade, mas uma criação de realidades alternativas, ou hiper-realidades, como chamou Jean Baudrillard, onde informações são filtradas e distorcidas para provocar reações e moldar comportamentos. Isso é amplamente explorado por bigtechs, que, por meio de suas tecnologias, criam simulacros que não refletem o mundo real, mas uma versão artificialmente construída que serve a interesses de controle e lucro.
Usuárias e usuários, imersos nessa simulação, tornam-se incapazes de distinguir o que é real do que é fabricado, sendo constantemente guiados e manipulados pelas representações que consomem, enquanto acreditam estar tomando decisões baseadas em suas próprias opiniões.
O público, capturado por uma falsa sensação de participação e interatividade, não percebe que está sendo manipulado por um sistema que visa manter o controle sobre suas ações e pensamentos, transformando-os em consumidores e objetos de vigilância. A promessa de
uma vida facilitada pela IA esconde, assim, uma realidade distópica, onde a autonomia e a liberdade de escolha são gradualmente erodidas em nome do controle e da maximização do lucro, enquanto as massas se mantêm distraídas pelo espetáculo incessante, como já alertava Guy Debord.
Empresas coletam quantidades massivas de dados de usuários que pensam estar interagindo com outras pessoas, errantes na busca por pertencimento, afeto e atenção. O que muitos não percebem é que esses dados são posteriormente vendidos a patrocinadores, anunciantes e grupos com interesses específicos, que os utilizam para influenciar a opinião pública, moldar comportamentos e manipular decisões políticas.
Ao usar algoritmos avançados, as bigtechs conseguem direcionar conteúdos altamente personalizados e envolventes, criando a ilusão de escolhas autênticas, quando, na realidade, essas escolhas são calculadas e manipuladas para atender a interesses de quem controla os meios de produção – de conteúdos, de valores e de significados.
Na lógica do capitalismo informacional, o valor econômico pode ser extraído do tempo e da atenção dos indivíduos, como acontece em redes sociais e plataformas de streaming. A transformação da saúde mental em uma commodity segue a mesma lógica, convertendo subjetividades em ativos para gerar lucro, tratados como produtos vendáveis e escaláveis.
Anúncios oferecem soluções rápidas e automatizadas, que prometem melhorar a saúde emocional de forma prática e acessível, mas sem a profundidade e a humanização necessárias para enfrentar o mal-estar que a artificialização da vida traz.
O surgimento de charlatães e gurus do mindset, mindfulness e pseudopsicologias da prosperidade são uma extensão dessa dinâmica, em que o sofrimento e a fragilidade emocional se transformam em oportunidade para vigaristas venderem armadilhas e esquemas lucrativos abusando de pessoas vulneráveis, ambiciosas ou desesperadas. Assim como o tempo dos usuários é monetizado por meio de publicidade direcionada, a atenção emocional é capturada e convertida em dados que são vendidos para anunciantes, ampliando uma cadeia de exploração disfarçada de cuidado.
As ferramentas digitais, ao invés de capacitarem as pessoas para enfrentar dificuldades e limitações, são usadas para perpetuar o uso constante de tecnologias que lucram com a fragilidade emocional, criando uma falsa sensação de resolução sem realmente abordar as causas profundas do sofrimento.
Desenvolver o pensamento crítico-reflexivo, através de interações analógicas, olho-no-olho, vivenciando a diversidade de ideias e de realidades contrastantes, é indispensável para subverter a lógica de exploração tecnológica do neoliberalismo informacional.
As redes precisam ser ressignificadas como espaços de solidariedade e multiconectividade, onde a troca de experiências, saberes e perspectivas seja possível, rompendo com a mercantilização das relações humanas.
Para tanto, é necessário desafiar o modelo dominante e transformar as plataformas digitais em espaços de emancipação e autonomia, onde as tecnologias sirvam ao bem comum, em vez de perpetuarem o lucro e o poder de poucos bilionários. Mas essa ideia não virá do coach que vende sucesso, nem do pastor que vende indulgência, do influencer que vende sensacionalismo ou do político que vende demagogia. Tampouco do chatbot, que não é seu amigo.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.