Cigarro, petróleo, comida, medicamentos. Grandes indústrias que movem o mundo utilizam-se de práticas fraudulentas para semear a dúvida sobre o que promovem. É o que mostra o livro “O Triunfo da Dúvida”, de David Michaels1. Este tema foi também apresentado em um documentário da Netflix recentemente e tem circulado em redes sociais como alerta a este grave problema de saúde pública, principalmente nos EUA.
No texto abaixo, tento fazer um sumário do capítulo seis onde o autor relata como, em sua visão, a indústria farmacêutica impulsionou a epidemia de opioides nos Estados Unidos, a partir dos anos 1990 – e que hoje mata o impressionante número de 300 estadunidenses por dia. Com o apoio de um uso ardiloso de pesquisas científicas, difundiu-se que opioides eram seguros e não viciantes. Médicos, de modo culposo ou doloso, passaram a receitar medicamentos poderosos para, por exemplo, uma mera dor de dente ou torção de tornozelo. Trabalhadores lesionados voltavam a trabalhar após receber doses fortíssimas de remédios altamente viciantes – que destruíam suas vidas.
O estrago foi tão grande que é possível relacionar a ascensão da epidemia com o aumento no número de crianças órfãs entrando no sistema de adoção, comenta o autor, que trabalhava no governo e testemunhou a tragédia.
Resumo do Capítulo seis:
Diferentes culturas e países adotam diferentes abordagens para o fardo da dor física. Quase universalmente, os excruciantes efeitos físicos de doenças como câncer e anemia falciforme são tratados de forma agressiva com a prescrição de analgésicos. Nos Estados Unidos, esse tipo de tratamento tem sido amplamente adotado, e os mesmos medicamentos utilizados para dor crônica também são indicados para indivíduos que sofrem lesões musculoesqueléticas, que passam por tratamentos dentários e na recuperação pós-cirurgia.
Por que tantos médicos estadunidenses receitaram fortes opioides a tantos pacientes e em doses tão elevadas?
Reconhece-se agora que a mudança na prática médica contribuiu para a epidemia de opioides, gerando trágicas consequências no presente e, inevitavelmente, no futuro. A dinâmica da epidemia está mudando, e a causa iminente da maioria das overdoses são a heroína e o fentanil vendidos no mercado clandestino. No entanto, muitos indivíduos foram sugados inicialmente para o ciclo dos opioides pela variedade de opções produzidas legalmente por alguns dos fabricantes farmacêuticos mais bem-sucedidos e lucrativos dos Estados Unidos.
Não estou sugerindo que essas empresas são as únicas responsáveis pela crise dos opioides. Notáveis fatores sociais e econômicos contribuem para essa complexa epidemia.
A partir dos anos 1990, o aumento do uso de opioides para dor trouxe a muitos a redução do sofrimento, um alívio bem-vindo. Mas não há dúvida de que, se os opioides controlados não tivessem sido disponibilizados em quantidades praticamente ilimitadas, a epidemia não seria tão grande.
Muitos indivíduos que morreram por overdose estariam vivos. O cérebro humano tem um mecanismo notável para controlar a dor.
Quando nos ferimos ou sentimos dor, nosso corpo produz os próprios opioides químicos, que se ligam a receptores no cérebro e nos nervos, reduzindo ou bloqueando a sensação dolorosa. Em muitos casos, esse mecanismo natural não é forte o suficiente para controlar o sofrimento, e, durante séculos, produtos feitos de ópio, e mais tarde de morfina produzida quimicamente, têm sido usados para trazer alívio.
Esses medicamentos funcionam para muitas pessoas. Há uma clara questão: suas propriedades causadoras de dependência são muito bem conhecidas e sempre foram motivo de preocupação. Os opioides sintéticos, assim como os semissintéticos derivados de opioides naturais, foram desenvolvidos em laboratório pela primeira vez há um século. Eles chegaram a ter uso medicinal marginal a partir dos anos 1960 e depois foram amplamente utilizados nos anos 1990.
Atualmente, dois dos mais conhecidos sintéticos são oxicodona, o principal ingrediente ativo do produto comercial OxyContin, e fentanil.
Este último, um dos mais potentes opioides sintéticos, é cinquenta vezes mais potente do que a heroína. O termo “opioides” se refere, portanto, a uma ampla categoria de produtos naturais e sintéticos, que se ligam a receptores específicos no cérebro e bloqueiam a dor, enquanto também produzem, em um grau ou outro, uma euforia que, às vezes, pode ser avidamente desejada pelos usuários.
Aqueles indivíduos que começam a procurar opioides sem outros objetivos, independentemente das consequências nocivas à própria vida, desenvolvem dependência. A recente epidemia começa em 1995, quando foi introduzido o OxyContin, nome comercial de uma nova formulação de oxicodona. O novo produto apresentava uma dose muito maior do que as versões anteriores de analgésicos à base dessa substância, como Percocet e Percodan, e prometia alívio mais duradouro da dor (12h, em vez de apenas 4h).
A fim de obter aprovação da Administração de Alimentos e Drogas (FDA) dos Estados Unidos para essa nova formulação, a indústria convenceu a agência de que, embora o OxyContin fosse mais potente do que os medicamentos anteriores, o atributo “de ação mais longa” o tornaria menos propenso a causar dependência. A lógica era baseada na alegação de que uma liberação mais controlada de oxicodona tenderia a causar menos euforia e abstinência do que as fórmulas de ação curta.
A FDA comprou esse argumento e permitiu que a empresa alegasse, no rótulo do produto, que a droga era menos viciante.
A realidade logo provou o contrário, e os pacientes que se tornaram dependentes rapidamente perceberam que os comprimidos poderiam ser esmagados e depois inalados, ou mesmo injetados. A indústria farmacêutica, com a então recente aprovação pela FDA, se esforçou em convencer os médicos de que a dor era uma questão menosprezada e pouco tratada em nossa sociedade (o que provavelmente é verdade), que os novos analgésicos eram uma maneira segura de tratar a dor porque praticamente não viciavam e que não poderiam ser alvo fácil de uso abusivo (possivelmente inverídico). Como eles fizeram isso?
O primeiro passo foi encontrar e utilizar material da literatura médica existente que serviria como cobertura para inventar um mundo inteiramente novo de “fatos” para mascarar as propriedades viciantes das drogas que eles estavam comercializando. No início dos anos 1990, havia muito poucas evidências do efeito viciante. As empresas encontraram alguns breves estudos precários que pareciam dizer o necessário — que os opioides eram seguros e não viciantes —, e então anunciaram os resultados.
Quando observamos esses “estudos”, podemos ver suas limitações de projeto e escopo, mas, naqueles primeiros anos de uso extensivo de opioides, pelo menos uma década antes do início da epidemia total, os números concretos ainda não estavam em evidência — dezenas de milhares de usuários tinham se tornado dependentes.
Uma das principais frentes utilizadas pelas empresas farmacêuticas foi uma carta com cinco frases ao editor do New England Journal of Medicine, publicada em 1980. Ela trazia o título “Addiction Rare in Patients Treated with Narcotics” (Dependência rara em pacientes tratados com narcóticos). Eis o texto completo: “Examinamos nossos arquivos atuais para determinar a incidência de dependência de narcóticos em 39.946 pacientes médicos hospitalizados que foram monitorados continuamente. Embora 11.882 pacientes tenham recebido pelo menos uma preparação narcótica, havia apenas quatro casos de dependência razoavelmente bem documentados em pacientes que não tinham histórico de dependência. O vício foi considerado maior em apenas um caso. As drogas implicadas eram: meperidina em dois pacientes; Percodan em um; e hidromorfona em outro. Concluímos que, apesar do amplo uso de drogas narcóticas em hospitais, o desenvolvimento de dependência é raro em pacientes médicos sem histórico de adição”.
Como carta (e não como trabalho científico), ela nunca passou por uma revisão por pares. Em outras palavras, citar essa carta nos anos 1990 foi o equivalente a citar, hoje, um comentário de rede social.
No entanto, ela se tornou uma pedra fundamental da promessa da campanha que a indústria moveria posteriormente, afirmando que os opioides têm baixo risco de dependência quando prescritos para dor crônica.
Durante os 25 anos seguintes, ela seria citada centenas de vezes na literatura médica e deturpada pela imprensa.
Em 2001, a revista Time chegou a descrevê-la como um “estudo de referência”, assegurando aos leitores que qualquer preocupação com a dependência de opioides entre os pacientes era “basicamente injustificada”.
Por fim, em 2017, o editor da revista emitiu um aviso sem precedentes de que a “carta foi citada de maneira ‘exagerada e sem críticas’ como evidência de que a dependência é rara em terapias com opioides”. Mais tarde, o autor apontou que esse texto, por cujo uso indevido ele não era responsável, tinha muitas limitações, incluindo o fato de que tratava apenas do uso de opioides em ambientes de internação hospitalar e que não havia acompanhamento depois da alta dos pacientes.
Foi até surpreendentemente fácil inventar um diagnóstico totalmente novo: a pseudoadição. A ideia era de que o desejo por opioides era de fato motivado pela dor ainda não aliviada, para a qual o paciente havia recebido inicialmente uma prescrição para opioides. O termo em si e a descrição inicial tiveram origem em um estudo descrevendo um (sim, apenas um!) paciente.
Apesar de não haver realmente provas concretas (ou mesmo superficiais) que apoiassem o conceito, ele decolou. Os fabricantes patrocinaram publicações sobre a “prescrição responsável de opioides”, informando aos médicos que os sinais de pseudoadição (em vez de verdadeira dependência) incluem solicitação de medicamentos pelo nome, comportamento exigente ou manipulador, consulta a mais de um médico para obter opioides e acumulação compulsiva.
E qual seria a melhor maneira de tratar a pseudoadição? Com mais opioides, é claro.
Em 2015, uma revisão da literatura revelou um total de seis artigos questionando o conceito. Esmagando essa produção bem-intencionada, surgiram centenas de artigos discutindo a pseudoadição sem qualquer tentativa de validar empiricamente o conceito. Não foi uma luta justa, e os resultados eram previsíveis. Este trabalho subjugou a ciência séria. Agora lembre-se da alegação fundamental em relação ao OxyContin: 12h contínuas de alívio da dor é um cenário melhor do que as 4h dos concorrentes, e menos sedutor para usuários problemáticos que anseiam pelo impacto mais rápido oferecido pelas drogas mais antigas.
Uma investigação do Los Angeles Times revelou que os próprios estudos da Purdue descobriram que os comprimidos de OxyContin liberam aproximadamente 40% dos ingredientes ativos de forma imediata; depois disso, a liberação é lenta. Como resultado, o efeito do medicamento se esgota em menos de 12h para a maioria dos pacientes, deixando-os desesperados por mais.
Para alguns, o efeito acaba em menos de 6h. O resultado é um duplo golpe: a dor subjacente retorna, e o paciente entra em uma abstinência aguda do medicamento.
A soma de tudo isso obriga o indivíduo a procurar por mais medicação, muitas vezes por uma dose maior. É claro que a Purdue estava ciente, mas continuou a vender o medicamento alegando sua eficácia por 12h, impulsionando o uso e o vício. Enfim, as evidências são simplesmente avassaladoras: fabricantes de opioides suprimiram alguns estudos, deturparam e valorizaram outros, alegaram que suas drogas não eram viciantes nem levavam facilmente ao uso abusivo e afirmaram que a abordagem mais eficaz para lidar com a dor do paciente era aumentar continuamente a dose da substância.
Mas não se preocupe! Essas drogas não são particularmente causadoras de dependência. Você não acredita em nós? Basta perguntar à nossa campanha de relações públicas.
Como demonstraram outras indústrias, com origens no auge do tabaco, a campanha de incerteza e desinformação sobre os impactos nocivos de determinado produto precisa unir ciência questionável a uma ampla pressão de relações públicas multissetorial. A campanha em três frentes dos fabricantes de opioides, dirigida a reguladores, médicos e ao público, seguiu a fórmula bem estabelecida e aperfeiçoada ao longo das décadas pela Big Tobacco: desenvolver “ciência sólida” produzida com essa finalidade (ou seja, ciência paga para apresentar conclusões benéficas) e manipular intencionalmente a ciência existente; contratar “líderes de opinião” para promover os produtos; criar e aperfeiçoar grupos de fachada para defender a importância das vendas irrestritas.
De um lado, lucros fenomenais; do outro, consequências trágicas. O preço pago não precisa ser resumido aqui, além do fato objetivo de que os opioides mataram dezenas de milhares e destruíram a vida de milhares mais, dizimaram famílias e comunidades inteiras e são responsáveis pela primeira queda na expectativa de vida nos Estados Unidos em mais de duas décadas.
Os maiores assassinos são agora os ilícitos fentanil e heroína, substituindo os opioides fabricados legalmente e que ajudaram a lançar a epidemia.
Nos Estados Unidos, overdoses envolvendo opioides mataram 42 mil pessoas em 2016. Esse número saltou para quase 48 mil pessoas em 2017, semelhante ao número anual de mortes por HIV no auge da pandemia. Houve algum progresso legislativo.
Em outubro de 2014, a Agência Antidrogas dos Estados Unidos reforçou os controles da competência médica para prescrever medicamentos contendo hidrocodona, proibindo a repetição de prescrições. Em comparação com os 12 meses anteriores, as prescrições de produtos com hidrocodona caíram 22%.
Mas a epidemia havia sido semeada antes dessa mudança de política; menos acesso a produtos legais resultou em mais uso de produtos ilegais, e a heroína e o fentanil ilícito são mais baratos do que as pílulas legais desviadas para o mercado clandestino.
Examinando as origens da epidemia, fica claro o que poderia ter sido feito para detê-la antes que se tornasse tão arraigada. Certamente a FDA poderia ter se recusado a concordar com a suposta segurança e eficiência dos opioides de ação prolongada manifesta nos rótulos desse medicamento sem nenhuma evidência científica.
Pesquisadores acadêmicos poderiam ter se afastado do financiamento da indústria e denunciado a prática enganosa do uso de observações anedóticas apresentadas como estudos. Empresas deveriam ter soado o alarme sobre o uso impróprio da droga muito mais rapidamente, em vez de manter em segredo os indícios da crescente dependência. Finalizo dizendo que esta tragédia deve ser exemplo ético e profissional para, nós, médicos e pesquisadores das ciências da vida. Esta “epidemia” não terminou e, ao contrário, faz centenas de vítimas todos os dias.
1- Livro:” O Triunfo da Dúvida: dinheiro obscuro e a ciência da enganação”. De David Michaels, 2024
Prof. Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022 e atual Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan. Diretor científico da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH).