Nos últimos tempos, tenho aprendido um montão de coisas com Ave Terrena. Se você não a conhece, deixa eu te apresentar quem ela é: dramaturga, diretora, performatriz, professora de teatro e poeta transvestigênera.
Com a Ave, aprendi sobre como as narrativas teatrais contemporâneas têm muito a contribuir para a representatividade, tirando pessoas marginalizadas do imaginário comum de alguém que tem toda a sua história resumida à sua dor e ao preconceito que sofre. Para Ave, essas narrativas deslocam o significado que atribuímos para identidades desviantes e constroem, a partir da ficção e da memória, significados mais positivos e otimistas para quem escapa do que é considerado como “norma”.
Digo tudo isso porque essa é a chavinha para uma reflexão super urgente que a gente deve fazer – a reflexão sobre o tipo de narrativas que estamos consumindo. Quando nos propomos a ouvir pessoas minorizadas, o que esperamos ouvir? Histórias trágicas e carregadas de tristeza?
Histórias sobre as violências sofridas, sobre os preconceitos diários, sobre as cicatrizes que se formaram em razão da luta pela própria existência? É assim, e só assim, que enxergamos essas pessoas?
Só conseguimos nos sensibilizar com a dor? Com as estatísticas de violência policial, de abuso sexual, de fome? Como nos permitimos chegar a esse ponto e ainda por cima chamar isso de empatia?
Esse ano, ouvi uma história que me tirou um pouquinho dos eixos. É aquele tipo de história que a gente normaliza a ponto de sair contando por aí como se fosse nossa, sabe.
Começa assim: “Conheci um menino pobre, mas pobre mesmo. Pobre do tipo que dividia o quarto com seis, sete irmãos”. E termina assim: “Todos eles morreram [por negligência do Estado], e isso nos ensina muito sobre o valor que precisamos dar para o hoje e para o que temos”.
E deixa eu te dizer: esse é o tipo de história que a gente conta tomando um café com um amigo, mas não deveria ser.
Porque a morte de alguém, causada por um projeto de desgoverno e de abandono dos mais vulneráveis, não está condicionada ao nosso engrandecimento espiritual, não existe para nos dar uma lição de moral, para nos fazer apreciar mais as nossas vivências privilegiadas. Seja ficção ou realidade, as dores de pessoas marginalizadas não estão por aí, dando sopa, para a gente se apossar delas, chamar de nossas e dizer que aprendemos muito com o sofrimento alheio.
Porque, se pararmos para pensar só um pouquinho, toda pessoa é muito mais do que a sua dor. Toda pessoa tem muito mais a dizer sobre si e sobre o mundo do que as coisas ruins que já viveu. Eu, por exemplo, enquanto mulher bissexual, tenho muito a dizer e a denunciar quando se trata de machismo e de bifobia.
Mas também tenho muito a dizer e devanear sobre os livros que já li e os que ainda quero ler, sobre aquela música que não sai da minha cabeça, sobre o dia que um bebê sorriu para mim na fila do banco, sobre como eu adoro filmes que são tão ruins que se tornam bons.
É como o Emicida escreveu:
“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir”
Entende? Para que a gente possa se conectar com quem é diferente de nós, não basta entender quais mazelas afligem essas pessoas. Isso diz muito, muito pouco. E é aqui que quero trazer de volta a figura da Ave, porque em uma das suas aulas sobre dramaturgia representativa, ela traz a seguinte reflexão: “A escrita, enquanto denúncia, tem um dever importante, mas esse não é o único papel que ela pode desempenhar”.
Junto com o dever de denúncia, Ave referencia Tatiana Nascimento (poeta, slammer, cantora e compositora negra) para falar sobre o direito ao devaneio – portanto, o direito que temos de usar as nossas vozes para falar sobre muito mais do que as nossas cicatrizes.
E, se a minha voz não for o suficiente para você, então me permita usar as vozes da Ave, do Emicida e da Tatiana para dizer: permita que a gente fale. Nos ouça, mesmo quando não estivermos exercendo nosso ativismo político.
Mesmo quando a gente quiser falar bobagem. Mesmo quando a gente quiser devanear. Nos veja como somos: com cicatrizes, mas muito mais do que elas; pessoas completas, e não estatísticas. É assim que nos mantemos vivos, e é assim que mantemos vivas as nossas histórias para as gerações futuras.
Rafaela Obrownick, 20 anos, é estudante de Relações Internacionais da Facamp