Trata-se de uma façanha do roteirista e diretor Ricardo Calil colocar como protagonista de Cine Marrocos (Brasil, 2021, 75 min.), pessoas que perderam (ou nunca tiveram) representação social, os chamados marginalizados, sem tratá-los, de um lado, como vítimas e, de outro, como bandidos.
Calil consegue com criatividade e a partir da concepção híbrida, que mistura documentário com ficção, encontrar beleza em meio ao caos e imprimir ao filme inesperado registro lírico. Não bastassem estas qualidades o espectador vai descobrindo outras camadas. Poderia ser visto como mero exercício de cinéfilo, ou filme saudosista empenhado em preservar o espírito da romântica época do cinema de rua.
O diretor toca estas questões e agrega outras em tom de denúncia, mesmo sem se utilizar de velhos discursos, e expõe a inabilidade e o desinteresse da sociedade em enfrentar o drama dos sem-teto e dos refugiados, e de questionar o poderio do estado representado da força assustadora da polícia.
Ou, de como vivemos em admirável mundo conduzido pela alta tecnologia, mas perdemos (ou nunca tivemos) a capacidade de nos sensibilizar com histórias de despossuídos que são tão próximas às nossas; afinal, são seres humanos, lutando pelo direito de viver e sonhar.
Calil ilustra a narrativa com a canção de exílio “Nine out of Ten”, do álbum Transa, de um Caetano Veloso vagando pelas ruas de Londres no início dos anos 1970, e que sintetiza as emoções do filme. O cinema está impregnado na letra (“nove entre dez estrelas de cinema me fazem chorar”) enquanto lança um grito de resistência: “estou vivo”.
Com este poderoso achado narrativo, o diretor revela o lado rejeitado da grande cidade de São Paulo – porque pobre, feio e marginal – e, entretanto, riquíssimo dramaturgicamente, pois são histórias reais desprovidas de filtros.
Quem viveu na capital paulista, ou a conheceu a partir dos anos 1950, provavelmente, frequentou o imponente Cine Marrocos, da Rua Conselheiro Crispiniano, localizado na parte posterior do Teatro Municipal. Ele se tornou referência da cidade e chegou a sediar um festival internacional de cinema, no qual compareceram figuras ilustres de Hollywood.
Transformado em cine pornô, acabou fechado e abandonado. Moradores de rua decidiram invadi-lo e ele virou edifício residencial. Segundo um depoimento, chegou a ter três mil moradores vindos de todos os lugares do Brasil e de 17 países, entre eles, pessoas da Ilha da Madeira, do Congo e Senegal.
Não por acaso, o português do Brasil se mistura ao de Portugal e ao inglês e francês, ressaltando o multiculturismo de uma comunidade de pessoas que perderam tudo e só lhes restou a própria história e a cultura como riquezas.
Na cena que abre o filme, vemos a grande sala tomada pelas cadeiras sujas e quebradas dentro de um ambiente escuro. É desse caos que Calil constrói seu filme e, de cara, propõe aos moradores realizar oficina de interpretação. Aparecem cerca de 20 pessoas que recebem preparação para encenar passagens dos filmes antigos exibidos no cinema.
Confira o trailer no link https://www.youtube.com/watch?v=4MCPrwlcf5o
As representações dão vida ao cinema porque vêm antecedidas das exibições dos filmes que fizeram sucesso no passado glamouroso do Marrocos e porque servem de simbólico resgaste da história e da dignidade daqueles personagens.
Do jornalista que fugiu da violência nascida dentro do palácio do governo no Congo, da mulher saudosa dos filhos que deixou na Ilha da Madeira, da brasileira orgulhosa da academia da qual foi dona e que, ao encenar Crepúsculos dos Deuses, sonha retornar à antiga vida; do refugiado que emula Marlon Brando, de Júlio César, e transforma do texto de Shakespeare em rap.
Cine Marrocos poderia, politicamente, recender ao mofo que se vê nas primeiras imagens. Entretanto, Ricardo Calil transformou as pautas do filme em discurso político sem ranços e alcançou uma contundência que gera comoção, mas deveria, também, provocar reação. Incompreensível que em um país tido como rico e moldado em princípios cristãos seja tão passivo ante o indigno que as cenas reais do desfecho nos jogam na cara.
Disponível no Now da Claro/Net
João Nunes é jornalista e crítico de cinema