Dentre os inúmeros desafios que a pandemia do SarsCov2 trouxe à nossa sociedade, o agravamento dos quadros clínicos ligados à saúde mental é dos mais sérios e desafiadores. O necessário isolamento e a manutenção do distanciamento social fizeram com que todos nós, de uma maneira ou outra, tivéssemos que conviver e estabelecer novos parâmetros de vida profissional e social no sentido de promover maior proteção individual e coletiva. Entretanto, as políticas públicas e seus enormes desafios ligadas à saúde mental antecedem em muito a pandemia. Eu sou formado em medicina na década de 70. Anos sombrios aqueles para a saúde mental. Tínhamos no País verdadeiros “depósitos” humanos em condições de vida inaceitáveis, com empresas de prestação de serviços com lucros enormes e financiados, principalmente, pelo extinto Inamps. Conheci situações degradantes como as do Hospital do Juqueri, em Franco da Rocha, e de Várzea Paulista, dentre muitos, que afrontavam a dignidade humana em níveis inaceitáveis.
Neste período, começou o movimento nacional de desinstitucionalização de milhares de pacientes. Este programa foi denominado “política anti-manicomial” e visava, em última análise, extinguir hospitais psiquiátricos e criar políticas públicas de cuidado respeitando totalmente os direitos humanos. Nos casos mais raros onde o paciente necessite de internação, isto deve ser feito em hospital geral, em enfermaria específica, e cuidado integral à sua saúde.
Em 2013, quando assumi a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Campinas, tínhamos uma situação bastante grave neste campo, com sérios problemas de caráter institucional e assistencial, tanto internos da SMS como em sua relação com o mais importante parceiro em saúde mental do município, o Hospital Cândido Ferreira.
Eu não conseguia entender como a cidade de Campinas, que participava ativamente e liderava a luta anti-manicomial em dimensões nacionais, criando modelos e práticas, ainda mantinha uma das maiores unidades de internação em saúde mental do País (hospital psiquiátrico). Passamos a trabalhar internamente para restaurar a especialidade dentro do Departamento de Saúde da SMS e estabelecer novos parâmetros administrativos e assistenciais com o Hospital Cândido Ferreira. Gradualmente, passo a passo, ano a ano, fomos conseguindo superar as dificuldades e construir uma relação que tivesse como objetivo único o melhor cuidado aos pacientes atendidos e dentro da política anti-manicomial, fundamental a SMS e ao País.
Em 2017, encerramos definitivamente as atividades da unidade hospitalar específica a pacientes de saúde mental em Campinas e criamos a enfermaria dentro de nosso Hospital Ouro Verde. Grande vitória!
Neste ano de 2021, tivemos duas importantes notícias: 1- A homologação de acordo judicial que regulariza definitivamente as relações da SMS com o Hospital Cândido Ferreira, conferindo segurança jurídica e institucional à esta parceria histórica e fundamental à população de Campinas; 2- A publicação pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que aponta, em seu capítulo 4, Campinas como modelo de rede de saúde mental baseado nos direitos humanos (Brazil Community Mental Health Service Network: A Focus on Campinas) *.
Este guia divulgado pela OMS tem o propósito de trazer urgência e clareza aos formuladores de políticas em todo o mundo e encorajar o investimento em serviços de saúde mental baseados na comunidade, em alinhamento com padrões de direitos humanos. O documento fornece uma visão de cuidados de saúde mental com os mais altos padrões de respeito pelos direitos humanos e dá esperança de uma vida melhor a milhões de pessoas com deficiências psicossociais, e suas famílias.
Em relação a Campinas, o documento enfatiza a configuração da rede e que é composta por centros comunitários de saúde mental (na forma de Centros de Atenção Psico-Social – CAPS) e Centros de Atenção Primária à Saúde de Base Comunitária. Estas estruturas são complementadas por outros serviços que fornecem suporte para as Unidades Básicas de Saúde (UBSs), às equipes de Consultório na Rua, às estratégias de desinstitucionalização, aos leitos de saúde mental em hospitais gerais e aos serviços de urgência e emergência (UPAs e PSs).
Campinas conta com 14 CAPS distribuídos pelos cinco distritos de Saúde para o atendimento de transtornos graves, crônicos, uso ou abuso de álcool e outras drogas e para crianças e adolescentes.
Campinas conta ainda com 20 residências independentes com moradores que integram o programa “de volta para casa” e cinco unidades de geração de trabalho e renda. Trata-se de um trabalho gigantesco, e que tem trazido grandes benefícios e tranquilidade a esta sofrida comunidade. É fundamental que esta área tenha constante atenção e prioridade pelas autoridades públicas e que seja conhecida e apoiada pela sociedade.
*Guidance on Community Mental Health Services – Promoting person-centred and right-based approaches. World Health Organization – 2021.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020