Nas últimas semanas, muito tem se falado sobre a série “mais assistida de todos os tempos no Netflix”, segundo informações da plataforma, chamada “Round 6” (2021). Em suma, sem dar spoiler, a série trata de um jogo bizarro onde participantes que possuem dívidas impossíveis de se pagar competem entre si arriscando a própria vida em brincadeiras infantis pervertidas por violência gratuita e sadismo. Enquanto isso, espectadores ultra-ricos que financiam o “jogo” assistem e se entretém com a desgraça dos competidores, que são o tempo todo levados a acreditar que têm controle sobre as próprias decisões e que podem sair vitoriosos das armadilhas à medida que se esforcem para superá-las.
A série, não por acaso, é sul-coreana. O país, emblema de um suposto desenvolvimento tecnológico alavancado pelo capitalismo liberal, lidera rankings mundiais de suicídio entre jovens e adultos, casos de ansiedade, síndrome de burnout (esgotamento profissional) e é, também, local de origem do filme vencedor do Oscar de 2020, “O Parasita”, cujo enredo expõe de forma incomodamente normalizada os contrastes, dramas, olhares e a banalização das relações cotidianas entre explorados e exploradores.
O filósofo conterrâneo e contemporâneo das duas produções, Byung-Chul Han, mais conhecido pela autoria do livro “A Sociedade do Cansaço” (2010), nos traz, em suas análises, ferramentas para perceber de forma mais crítica as duas ficções acima mencionadas, colocando-as em perspectiva, inclusive, com acontecimentos que têm se tornado cada vez mais comuns nos ambientes de trabalho, no convívio social e nas relações afetivas no mundo todo – inclusive no Brasil.
Han sugere que um sentimento de constante “positividade”, em consonância com a propaganda de liberdade e independência insistentemente evocadas pelo neoliberalismo, se apoderou da forma como vemos (ou deixamos de ver) a exploração cada vez maior que persiste, sobretudo, entre as pessoas de menor poder aquisitivo na luta diária para garantir teto, alimento e dignidade.
Voltando os olhos para nosso entorno, diante do agravamento da crise econômica no Brasil, temos testemunhado o aumento do desemprego, da pobreza e da informalidade. Milhões de trabalhadores e trabalhadoras endividados, desiludidos e abandonados pelo Estado, diariamente sendo convencidos de que a “negatividade” de horas de trabalho em escritórios e fábricas, com patrões e rotinas programadas, estaria sendo superada pela “flexibilidade” de trabalhar de qualquer lugar, a qualquer hora, sendo seu próprio patrão, com remunerações ilimitadas.
Na contramão da ilusão, vemos o aumento da fome, dos despejos e da miséria. Grande parte da população, todavia, segue anestesiada, amortecida, indiferente.
Foucalt, décadas atrás, já chamava a atenção para a iminente e crescente resistência diante das formas repressivas como a autoridade costumeiramente vinha sendo exercida: as pessoas tenderiam a tolerar cada vez menos as prisões, as regras rígidas, os dogmas e as convenções sociais unilateralmente impostas, limitadoras de liberdades individuais. Em substituição aos regimes autoritários dos séculos passados, que inspiraram imaginar distopias futuristas de controle militar, ideológico, uniformizador e impositivo da ordem pela violência, a sutileza dos dispositivos de controle que atuam entre nós hoje em dia é, ao mesmo tempo, genial e aterrorizante – eficaz e feita para passar despercebida.
Diante da falsa promessa de horário flexível, pessoas passam o dia todo presas a telas trabalhando sem qualquer garantia de uma remuneração suficiente para pagar as contas.
A “gamificação” do trabalho que são compelidas a realizar, em simulações interativas, quase lúdicas, esconde a natureza vigilante e controladora por trás de algoritmos que capturam dados de localização e deslocamento, tendências de comportamento, padrões de interação, perfis de consumo etc.
O fetiche pelo consumo e pela ostentação de produtos sofisticados e tecnológicos omite que todas as despesas de trabalho ficam por conta do trabalhador, que paga para trabalhar. O patrão deixa de ser um alvo tangível, pois está, na verdade, diluído em um sem número de acionistas espalhados pelo mundo todo. Alguns, aliás, no papel duplo de “investidores” e trabalhadores explorados pelas empresas que ajudam a financiar e que se valorizam exatamente pelas relações parasitárias de trabalho precarizado, uso abusivo de verbas públicas, predação de recursos naturais e o controle dissimulado de tempo, energia e liberdade dos chamados “colaboradores” ou “empreendedores”.
Perder a vida tentando ganhar a vida em um jogo macabro onde a competição de todos contra todos garante a manutenção de privilégios de quem, do alto, assiste a aniquilação daqueles que, apenas coletivamente, poderiam pôr fim a um ciclo de desigualdades, injustiças e exploração, infelizmente revela-se uma tendência que nunca esteve apenas no mundo das ficções. Quem vai sobreviver à segunda temporada?
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em linguagens, mídia e arte