Quando extrapolou fronteiras, décadas atrás, o moderno cinema iraniano foi tido como hermético e pouco popular. Nada disso era verdade – só não sabíamos compreender o novo, o inusitado e, portanto, torna-se mais fácil adjetivá-lo como estranho. Hoje, um tipo de cinema que vem do Irã está cada vez mais distante do hermetismo e impressiona pela forma como dialoga com o público disposto a vê-lo.
Yalda – Uma Noite de Perdão (França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, Líbano e Irã, 89 min.), direção e roteiro de Massoud Bakhshi, e vencedor do prêmio do júri do Festival Sundance 2020, instiga com trama e narrativa eletrizantes.
E chega arrombando a porta. Não há preâmbulos, prefácios, prólogos. A história está posta desde o início: carro de polícia conduz Maryam (Sadaf Asgari), de 22 anos, a programa de TV que transformou a trágica vida dela em show – reality show, entretenimento a ser consumido durante nosso jantar, sofrimento alheio oferecido como cardápio a embalar nossa solidão.
Mais demagógico não poderia ser o apresentador (Arman Darvish) que saúda Alá “piedosamente” e se revela ser humano impiedoso quando Maryam desvia os propósitos do programa dele. “Não estou nem aí pra você” – assim é tratada a garota que, acidentalmente, mata o marido e terá de cumprir alguns anos na cadeia.
E, no Yalda, ela aguarda ser perdoada pela filha do morto numa espécie cruel de “Você Decide”, com direito a voto dos telespectadores, sorteio de prêmios, presença de atriz famosa lendo poema encomendado pela produção, aplausos e audiência incapaz de enxergar o sofrimento alheio; antes, está interessada em passar o tempo, divertir-se, esconder-se de si mesma projetando as próprias dores no outro.
Ninguém está nem aí para o desespero de Maryam, nem a irresponsável mãe dela (Fereshteh Sadre Orafaee). Querem o perdão menos para libertá-la e muito mais para desfrutar do show.
A graça, segundo a direção do programa e aceita passivamente pelo público, está em tudo terminar bem. O perdão de Maryam é o perdão dos nossos muitos desacertos diários e dos quais tentamos fugir.
Massoud Bakhshi toca com extrema felicidade no tema, o mais difícil (e o mais nobre) ato humano, e aproveita para juntá-lo ao mais fácil: o julgamento, o apontar os dedos, o atirar pedras. O que julga, se julga detentor do poder da infalibilidade, não erra nunca, trata-se de ser inumano. E quando erra (triste descoberta) e se vê obrigado a, também, pedir clemência, desvela diante dele a fragilidade de ser falível. Só, então, ele será capaz de enxergar a própria humanidade, a condição, afinal, de todos nós.
Narrado em tom de suspense, o diretor/roteirista se incumbe de criar todas as tensões possíveis. Dos gestos de temor e de insegurança da protagonista, à aflição da mãe irresponsável, do diretor impassível do programa (Babak Karimi), da frieza do apresentador, dos números da audiência e de um bastidor que culminará com virada espetacular.
A propósito, nesta virada, se encontra a único revés que sofre o bom roteiro. Inverossímil a vilã Mona (espetacular performance de Behnaz Jafari), do nada, escapa do camarim e depara com o fato que mudará o rumo da história. O erro, embora evidente, acaba suplantado pelos acertos do conjunto do roteiro.
Pena que um filme com estas características seja quase ignorado pelo grande público por vir de país remoto (para nós) e nascido em cinematografia que ficou conhecido por causa de um estigma.
Eis um bom momento para quebrar modelos: não tema assistir a Yalda – Uma Noite de Perdão. Pelo contrário, ofereça a si mesmo (a) a oportunidade de ter contato com esse cinema (ainda) obscuro no ocidente e descubra o talento do diretor Massoud Bakhshi e sua capacidade de dirigir bem o filme e o elenco inteiro.
O plano final, aberto, câmera parada mostrando em silêncio os últimos passos da história é um dos exemplos desse talento. Quando sobe a música e apaga a luz percebemos o peso da narrativa e os motes dela explicitados.
Trata-se de superficial show de TV que, no entanto, se esteia em poderosos temas da grande tragédia humana e, com os quais, ainda não sabemos lidar, apesar de alguns milhares de anos de vivência na terra.
O filme entra em cartaz nos cinemas dia 9/12/2021e, em breve, chega ao streaming
João Nunes é jornalista e crítico de cinema