Mais de uma vez, dissemos que durante a pandemia do SarsCov2 vivemos momentos de extrema preocupação tendo em vista a indisponibilidade de insumos, fármacos e estrutura para o enfrentamento da pandemia. Esta fragilidade foi e ainda é, inquestionável. Mas, certamente, esta dificuldade do país na produção e desenvolvimento de princípios ativos para várias áreas da assistência à saúde tem se avolumado e vem causando grande preocupação sobre o futuro de um dos grandes pilares da saúde, seja pública como privada, que é a assistência farmacêutica. E esta carência, infelizmente, não é de hoje.
Nas décadas passada e atual, temos vivido este drama “em rodízio” entre os medicamentos mais relevantes. Neste mesmo espaço em março deste ano, fizemos uma reflexão importante sobre assistência farmacêutica para o tratamento e cuidado ao câncer, com ênfase nas doenças onco-hematológicas (1). Tentamos deixar claro que as dificuldades são enormes, cíclicas e que parecem não ter solução de curto prazo. Este cenário poderia ser descrito para as drogas da atenção básica, das doenças negligenciadas, muitas das doenças raras e medicamentos inovadores tais como os anticorpos monoclonais e inibidores das tirosinas quinases, por exemplo.
A dependência nacional por matérias-primas neste campo é enorme e vem aumentando ao longo dos anos. Somos grandes importadores de quase tudo. Em momentos de absoluta estabilidade do mercado através do mundo, isto talvez não seja tão sentido pela população, gestores e governantes. Mas, quando há uma crise sanitária generalizada, associada a uma guerra sem sentido, mas de grandes proporções e que interfere em nosso dia a dia, sentimos “na pele” estas carências e nossas limitações quase intransponíveis.
Vivendo estes dramas e reconhecendo a necessidade de enfrentar esta situação aflitiva e de grandes proporções, o Governo do Estado de São Paulo resolveu criar a Secretaria de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde. A ideia jamais foi quebrar o comando único da saúde estadual, mas criar uma instância para fortalecer a saúde pública e que possa pensar, discutir e projetar ações para mitigar e, em muitos temas, resolver, estas necessidades. Esta proposta, certamente, cabe também em nível nacional e deve ser um tema a ser discutido e implementado pelo próximo governo a ser eleito nas próximas semanas.
Dentro da estratégia de trabalho desta nova Secretaria, foram criados 11 grupos temáticos e um deles foi denominado “núcleo de medicamentos” e vem discutindo semanalmente como propor algo factível e que possa ser base para o futuro. Os objetivos gerais deste núcleo foram definir as políticas públicas de uso racional, pesquisa, desenvolvimento e produção de medicamentos para, por exemplo, as doenças negligenciadas e os medicamentos inovadores. Este núcleo tem 13 membros de várias instituições públicas e privadas, incluindo as três universidades paulistas, a Unifesp, a FURP, o IPT, o IAL, Hospital Emílio Ribas e o Hospital da Beneficência Portuguesa.
Nas primeiras reuniões, ainda que não saibamos como isto será no futuro, ficou decidido que com os esforços conjuntos entre FURP e Instituto Butantan, seria fomentado o desenvolvimento uma grande “fábrica” estadual de medicamentos em que a FURP ficaria com a produção de fármacos obtidos a partir de síntese química ou a partir de isolamento de elementos da natureza (plantas, por exemplo) e o Instituto Butantan ficaria com a enorme tarefa de produção fármacos inovadores incluindo os imunobiológicos.(vacinas, soros, anticorpos monoclonais etc.) e terapia gênica e celular, com o importante projeto de tratamento com as Car-T Cells.
A exceção estaria com a produção de hemoderivados cujo projeto nacional está a cargo do Ministério da Saúde com a conclusão e operação da Hemobrás nos próximos meses ou anos. Este projeto deverá resgatar a produção da FURP em suas duas fábricas (Guarulhos e Américo Brasiliense) e a conclusão do grande parque fabril em pleno desenvolvimento do Instituto Butantan e de sua Fundação Butantan. O desafio é gigantesco, mas absolutamente necessário.
Neste projeto, é claro, precisaremos estabelecer inúmeras parcerias, tanto com entidades privadas como governamentais, nacionais e/ou internacionais (soberanos ou isolados). Estas parcerias deverão ser buscadas onde estiverem e a ideia é que deixemos de ser apenas importadores, mas que passemos a produzir isoladamente ou em associação, fármacos para o país e, quem sabe, para exportação a países de perfis semelhantes ao nosso.
Temos que levar sempre em conta o espírito público nesta decisão política. Temos uma relação enorme de medicamentos e insumos que são críticos à saúde pública, mas que não têm interesse às casas farmacêuticas ou produtores pela sua baixa rentabilidade ou mercado bastante restrito. Temos muitos fármacos fundamentais às doenças infecciosas ou parasitárias, drogas oncológicas “antigas” e drogas ou procedimentos inovadores que não serão acessíveis a nossa população em curto espaço de tempo.
Dentro do princípio da equidade, devemos procurar entender cada um destes cenários e tentar ultrapassar estas dificuldades. Pode ser que estejamos sendo “visionários”, mas existem momentos em que devemos pensar grande e trabalhar duramente para atingir estes objetivos sociais e científicos.
(1)- Tratamento do Câncer: o desafio do acesso aos medicamentos. Carmino De Souza e Angelo Maiolino. Hora Campinas, 07/03/2022
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Atual secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo.