Impossível não notar o avestruz, animal de pernas e pescoço longos e corpo grande e desengonçado – mas inteligente. Na mesma plantação onde se alimenta, ele se oculta e esconde ovos que preservarão a espécie. Esta metáfora é uma leitura possível de ‘Madalena’ (Brasil, 2021, 1h21 min), de Madiano Marcheti. O uso da figura de linguagem mostra a intenção acertada do diretor em revelar e, no contraponto, dissimular. No exercício dessa tensão, ele sugere que a exuberância das imagens mascara as sombras, jeito elegante de denunciar a sujeira que não aparece porque está debaixo do tapete.
No jogo de esconde, ouve-se apenas a voz (e uma vez) do poderoso dono das terras, espécie de pai-patrão que não admite contestação – nem do filho. Da mulher, candidata a senadora que defenderá interesses dele no congresso, sabe-se só o nome. A protagonista desapareceu e quem encontra um corpo escondido no meio da plantação de soja é o inseguro filho do dono.
A plantação é o grande elemento de exposição da narrativa e o modo de o espectador se conectar com a realidade desconhecida. Contudo, ela camufla insolúveis problemas, que vão do desmatamento ao abismo social da cidade dividida entre condomínios luxuosos e bairros de casas populares, todas iguais, sem personalidade, infraestrutura, árvores, áreas de lazer, parques e rios.
A frase-síntese vem da personagem que acorda em viagem de carro e diz: “parece que a gente está no mesmo lugar”. O mesmo campo verde forrado de soja e o mesmo céu azul, onde, dizem, se escondem objetos voadores não identificados.
Em meio à atmosfera carregada o diretor compõe cenário bonito de cores e conformações valorizado pela fotografia de Guilherme Tostes e Tiago Rios e escolhe belos planos abertos sobre os campos, em composição com o céu, e plongée para a casa rica vista de cima no condomínio. E, em meio a esse admirável mundo novo erigido sobre escombros da floresta, Marcheti busca resquícios do paraíso perdido.
Quando, no computador da amiga Madalena desaparecida, Luziane (Natália Mazarim) ouve Tetê Spindola se lamentar na melancólica Piraretã, ela evoca o Pantanal do passado, emblema do Mato Grosso.
O filho do dono, Cristiano (Rafael de Bona), se mobiliza (e se sente ameaçado) ante o drama do corpo escondido porque pensa no futuro (ele será o dono, talvez, melhor que o pai insensível e a mãe encantada com veleidades políticas). Quando Bianca (Pamella Yule) encontra oásis em meio à plantação, mata cortada por rio caudaloso, onde, junto com duas amigas se estabelece inesperada comunhão, vislumbra-se o presente possível.
O roteiro de oito mãos (diretor, Thiago Gallego, Thiago Ortman e Tiago Coelho) se estrutura sobre diálogos curtos e secos, enquanto as músicas incidentais da trilha de Junior Marcheti acentuam a atmosfera de suspense; afinal, alguém desapareceu.
E por que o roteiro não tenta descobrir o responsável? Porque na solidão dos campos de soja tudo é escamoteado (fazer algo desaparecer sem ninguém perceber). Do corpo escondido, dos meninos ricos exibindo motos envenenadas, das garotas de programa que sonham dias melhores, dos rapazes (ricos) bombados à base de droga, da música sertaneja mercadológica, das máquinas agrícolas que ostentam poder, dos drones que tudo veem e daqueles que matam e ninguém vê.
O que o roteiro faz é se perguntar: quem, no país campeão de assassinatos de pessoas transexuais e travestis, se preocuparia em desvendar o crime? O preconceito internalizado pode até passar despercebido, mas matar é crime e ninguém pode ser morto por ser transexual. Não se trata de concordância (ou opinião), mas de humanidade.
A referência a ‘Na Solidão dos Campos de Algodão’, de Bernard-Marie Koltès, sobre dois perdidos (ocultos) na noite suja da grande cidade, não soa gratuita, com a diferença que, na peça, pode-se trafegar pela poética sugerida no título.
‘Madalena’ também tangencia a poética, a despeito da tragédia. No país que aprendeu a se esconder (ou escamotear) a belíssima oferenda de Bianca no oásis do rio serve como ritual de renascimento do verde da mata, da água corrente límpida do rio e de todas as pessoas e de todos os bichos. Até do avestruz que nunca, antes, precisou se alimentar nem esconder ovos na solidão dos campos de soja.
O filme, premiado em diversos festivais pelo mundo, estreia nesta quinta-feira, dia 9/12/2021, nos cinemas e, em breve, no streaming
João Nunes é jornalista e crítico de cinema