Todos os meus amigos e colegas sabem de minha vinculação com a Itália no campo da ciência e da educação em todos os níveis, em minha especialidade, a Hematologia. Temos inclusive uma Associação Ítalo-Brasileira de Hematologia (AIBE), que foi criada na Itália e que completou formalmente 20 anos neste ano de 2023. Sua história está descrita em um livro celebrativo, para promover e desenvolver pesquisas, eventos e treinamento em todos os níveis no campo da Hematologia e Terapia Celular (1,2).
Fiz meu pós-doutorado na Universidade de Gênova – Hospital Universitário San Martino, nos anos de 1997-1998. Apesar de termos um oceano entre nós, fizemos muitas coisas juntos deixando um legado e ainda desenvolvendo muitas coisas importantes para a ciência, educação nos dias de hoje e, muito importante, com grande amizade.
O que eu não havia experimentado até agora, era a utilização do sistema de saúde pública da Itália como paciente, ou melhor, pai de paciente. Tenho uma filha, também médica, e que vive em Roma e que ficou grávida, nos dando a terceira neta. Ela durante toda a gestação e na assistência ao parto utilizou o sistema público de saúde local e em todos os momentos e circunstâncias. Realizou todas as consultas e exames pelo sistema público.
Eu pude, sempre que estive com ela, acompanhá-la em suas visitas e exames. A primeira observação que faço, é que todos os cidadãos italianos, creio, sem exceção, utilizam o sistema público de saúde com um sentimento de pertencimento absolutamente natural. Nas unidades de saúde, tanto nas Unidades “Básicas” (USL), nas Policlínicas e nos Hospitais, é possível ver pessoas dos vários extratos sociais atendidos e cuidados absolutamente da mesma maneira.
As dificuldades, as facilidades, o acesso, a “burocracia”, enfim, eram iguais para todos. As portas das unidades estavam sempre abertas e acolhedoras. A cultura italiana no relacionamento humano é muito semelhante à nossa. Afinal, somos latinos e pela forte influência da imigração italiana sobre nossa sociedade, adquirimos muitos hábitos e costumes semelhantes aos deles.
Em muitos momentos, parecia que estava em casa tal era a semelhança do relacionamento humano que se estabelecia. Temos o nosso SUS, absolutamente gratuito e acessível. Devo lembrar que mesmo os sistemas públicos de acesso universal, como o sistema italiano, não são, em sua grande maioria, totalmente gratuitos ainda que os valores cobrados sejam quase simbólicos.
Não estou defendendo o pagamento apenas apontando uma diferença que, mais que cultural, é social e econômica. Nossa população é certamente mais carente e dependente do que a população italiana. Por outro lado, os recursos federais alocados na saúde pública da Itália são maiores nominalmente que os brasileiros mesmo sendo a população italiana 3-4 vezes menor que a nossa.
O meu testemunho neste artigo é no sentido de valorizar o SUS. O SUS será tanto melhor quanto mais pessoas e de todos os níveis sociais o utilizarem. Vimos durante a pandemia de Covid-19 a importância do SUS. Isto já foi exaustivamente reportado e enfatizado. Muitos programas especializados de saúde são excelentes e exemplos para o mundo. O que é melhor, são de acesso para todos no Brasil. Podemos citar os programas de AIDS, Transplantes, Sangue, PNi (plano nacional de imunizações), etc. como de grande sucesso.
Importante é que todos nós possamos ser responsáveis e participantes para o constante aperfeiçoamento do SUS. Eu costumo dizer que é muito mais fácil estar do “outro lado do balcão”, isto é, no papel de médico ou gestor de saúde. Mas, todos nós deveríamos estar do lado dos pacientes para conhecer as dificuldades e as virtudes de nosso sistema de saúde, seja ele público ou privado.
Nada como a experiência vivida em primeira pessoa para criar um juízo crítico, mas generoso e propositivo. Esta experiência como familiar de paciente que usou o sistema de saúde de um país distante do nosso, mas com perfil social em sua atividade, por vários meses e que continuará a utilizá-lo, faz com que possamos contribuir um pouquinho mais para os nossos sistemas público (SUS) e privado.
Nada é ou será perfeito na saúde pública. Sempre devemos evoluir e melhorar. Usar experiências válidas e vitoriosas podem fazer com que encurtemos caminhos para alcançar nossos objetivos. É claro que o perfil epidemiológico e social da Itália é diferente do nosso. Mas, quando falamos de sistemas de saúde, devemos aprender com o que é bom e, se possível, integrá-lo em nosso SUS.
(1)- Carmino De Souza: A extraordinária cooperação ítalo-brasileira na hematologia. Hora Campinas, 03/09/2023.
(2)- Vários autores – Edição trilíngue (português, italiano e inglês) – ISBN 978-65-00-75887-0, 2023. 20 anos Associação Ítalo Brasileira de Hematologia (AIBE) – pg.1-77.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.