Eu devia ter uns 10, 12 anos no máximo, e voltava para casa sozinho, bem tarde, o que não era comum. Talvez fosse pegar algo que tinha esquecido e retornar para a praça central, onde meus pais estavam. Pois lá ia eu, sozinho, quando deu-se o milagre. Todas as luzes da cidade se apagaram, e isso não era raro, 40, 50 anos atrás, em uma comunidade do interior.
Hoje ficamos indóceis, irascíveis mesmo, quando falta eletricidade após um temporal. Mas naqueles tempos sumir a luz, em curtos e às vezes longos períodos, era algo bem rotineiro, e aí o remédio era respirar fundo e esperar. Foi o que eu fiz. Respirei fundo e o que vi, jamais esqueci.
Já bem pertinho de casa, estava naquela praça menor mas muito especial, onde tive tantas alegrias, em frente ao grupo onde estudei e fiz seus primeiros contatos com o mundo.
Pois naquele momento aquela pracinha humilde, coberta de terra, estava brilhando, luminescente, com o cintilante de uma infinidade de vaga-lumes. Em meio ao breu de mais um blecaute, naquela noite profunda e em sua inconsolável solidão, eu vi a beleza, em seu mais estupendo formato.
Aqueles vaga-lumes incontáveis, acendendo e apagando, acendendo e apagando, eram de um encanto assustador, daqueles que dão vontade de chorar de tanta lindeza – lembravam, hoje percebo, a Noite Estrelada de Van Gogh, mas muito, muito mais maravilhosos, que me desculpe o sofrido artista holandês. Durou pouco, talvez alguns minutos, porque logo a energia voltou, e o contraste do pisca-pisca com a noite escura não tinha o mesmo efeito. Foi o suficiente, entretanto, para que eu pudesse correr feliz para casa e, depois, dormir satisfeito.
Biólogos, ambientalistas e outros já alertaram que o excesso de iluminação tem sido fatal para a sobrevivência dos vaga-lumes. A fêmea atrai o macho com sua luz, mas essa impressionante modalidade de encontro amoroso ficou comprometida com a urbanização crescente, e consequente intensificação da iluminação artificial, em todo planeta. O resultado é a diminuição da população de vaga-lumes, o que representa uma das maiores perdas no âmbito do atual processo de extinção planetária da biodiversidade.
Como citei antes, neste espaço, muitos cientistas entendem que estamos passando pela sexta megaextinção de espécies.
No caso dos vaga-lumes, são muitas as perdas com o seu progressivo desaparecimento, como alertou a Declaração de Selangor, aprovada no Simpósio Internacional de Vaga-lumes em Selangor, Malásia, de 2 a 5 de agosto de 2010, e depois atualizada pela Rede de Pesquisa sobre Vaga-lumes em 25 de novembro de 2014.
Lembra a Declaração de Selangor que os vaga-lumes são bioindicadores da situação de muitos ambientes naturais. Se eles estão relativamente conservados e protegidos, se a natural interação entre as espécies nesses ambientes está fluindo de forma razoável, a presença e a atividade luminosa dos vaga-lumes vão confirmar. Outra razão é que a maravilhosa capacidade dos vaga-lumes de produzir luz tem sido utilizada pela biomedicina, com muitos benefícios para a humanidade.
Ao lado da iluminação intensa nas cidades, também representam ameaças aos vaga-lumes o uso desenfreado de agrotóxicos, a poluição crescente nos rios e a degradação generalizada de seus habitats naturais, pelo desmatamento e outras causas. A Declaração de Selangor também nota que, em comparação com outros insetos, os estudos sobre vaga-lumes são ainda muito insuficientes. Enfim, por vários motivos, uma riqueza natural de beleza tão comovente vem sendo perdida, como mais um prejuízo do estilo de vida que se tornou dominante na Terra, a casa comum de todos.
Claro, o desaparecimento contínuo dos vaga-lumes é somente mais uma das incontáveis consequências da urbanização desmedida e imparável – mais da metade da humanidade já vive em cidades e a proporção só cresce.
No atual cenário global, refletir sobre como os ambientes urbanos podem ser repensados e reestruturados se torna, então, um dos maiores desafios na esfera da sustentabilidade.
Movidas por essa percepção, instigadas pela vida sem cor e sabor de muitas áreas urbanas, muitas pessoas estão buscando fazer a sua parte e semeando um novo horizonte para as cidades, através de iniciativas como as hortas urbanas. Ações como as hortas urbanas podem parecer um movimento romântico, de pequena dimensão e eficácia diante da brutalidade normalmente associada à urbanização inconsequente, mas na realidade é algo transformador e inspirador. São múltiplos os exemplos de ressignificação de pedaços de áreas urbanas através das hortas, de intervenções artísticas e outros gestos que mobilizam e resultam em mudanças.
O certo é que o modelo de cidade que se tornou dominante até o final do século 20 não é nada sustentável. Mas qual seria um novo modelo, viável no atual estágio civilizatório?
Pergunta difícil e provavelmente sem resposta. Mas há tentativas muito interessantes em curso. Além dos casos já citados, existe por exemplo a Rede das Cidades das Crianças, baseada nos conceitos do educador italiano Francesco Tonucci.
Ele defende que uma cidade, para ter realmente qualidade de vida, deve ser uma cidade pensada e construída a partir do olhar das crianças, deve ser uma cidade, em resumo, concebida idealmente para o bem estar das crianças. Seria, assim, uma cidade que estimula o lúdico, o brincar, a imaginação, e que fomente de fato a participação das crianças nas decisões públicas.
Mais um sonho, utopia, como o desejo de proteção dos vaga-lumes? Que seja, o mundo não se move sem sonho, sem gente olhando mais além do que a vista alcança. Talvez algo novo, corajoso, saia da conjunção de iniciativas de coloração ambiental, como as hortas urbanas e os tetos solares, e aquelas com viés mais social, como as Cidades das Crianças.
O que não pode, nessa altura do século 21, de diversas crises planetárias acontecendo ao mesmo tempo, é haver uma acomodação e prevalecer a sensação de que não há nada mais para se fazer, que o caos está instalado e que a humanidade não tem futuro mesmo.
Eu, de minha parte, vou continuar sonhando com o resgate dos vaga-lumes e do brilho das estrelas, outro patrimônio imaterial que também vem desaparecendo paulatinamente. Perder a possibilidade de apreciar as estrelas, o céu estrelado, é outra grande tragédia contemporânea nas megacidades.
Eu quero exercer o meu direito ao céu, como tem defendido, entre outros, o astrônomo Julio Lobo, incansável no Observatório de Capricórnio, como é conhecido o Observatório Municipal de Campinas Jean Nicolini.
Do alto do Pico das Cabras, Julio e o Observatório são uma referência permanente para todos que se empenham por cidades mais humanizadas porque respeitadoras dos ciclos e teias da natureza, tendo como bônus o encanto dos vaga-lumes e das estrelas cintilando de emoção.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]