Há uma curiosidade marcante quando o assunto é HQ e as muitas adaptações para o cinema: são filmes direcionados a jovens, em função do conteúdo de aventura, ação e fantasia e cuja linguagem está associada aos games, mas que exercem intensa atração sobre adultos.
No entanto, ao ver “Adão Negro” (Black Adam, EUA, aventura, 2022, 124 min.), de Jaume Collet-Serra, fica claro que o filme foi concebido para atender a expectativa de pré-adolescentes. A presença do bom ator Bodhi Sabongui no papel de Amon, personagem-chave da trama, define a impressão que se tem logo no início.
A atmosfera do filme trabalha nessa direção, como se estivéssemos vendo antigos e toscos seriados da TV que preenchiam a vida de, especialmente, garotos que deixaram de ser criança; porém, não eram vistos nem se viam como adultos. Ante à clara constatação, o filme perde a consistência porque nessa idade estamos mais interessados na tal aventura – questionar e refletir não fazem parte do que chamamos vida.
A batida história, os efeitos especiais que ficam velhos no dia seguinte, a trilha sonora de Lorne Balfe, grandiosa e onipresente e composta a partir do clichê do clichê, não oferecem senão um pouco de tédio durante a longa sessão de mais de duas horas. Não se trata de crítica ao segmento do espectador citado – há excelente títulos do gênero da história do cinema.
A questão é a absoluta falta de algo novo ou atraente que puxe a plateia (adolescente ou adulta) para a história e ela se divirta e sinta prazer em assistir aos meandros dos caminhos trilhados pelos personagens.
Há bem-vindos momentos engraçados (elemento fundamental de qualquer roteiro baseado em HQ), como a performance de Amin (o americano-palestino Mohammed Amer), no deserto, sozinho dentro de um jipe, em meio à guerra tecnológica, sendo interrompido por uma bomba enquanto canta “Baby come Back”, de Player, música chiclete dos anos 1970 que continua a embalar românticos e nostálgicos.
Ou quando o próprio Amin, ao lado da irmã Adrianna (Sarah Shahi) encontra o herói que dá título ao filme (Dwayne Johnson). No mesmo jipe, eles fecham o vidro manual do carro temendo a chegada do poderoso estranho que, àquelas alturas já tinha destruído paredes e pessoas voando modo estranhíssimo (em pé) e, portanto, um sujeito a ser temido. Ou ainda, a citação explícita de Clint Eastwood ao som de música de faroeste.
Quanto ao referido herói, a existência e atuação dele sugerem puro pastiche, pois nada na encenação parece crível. Ele surge em lugar chamado Kahandaq, onde cinco mil anos antes foi aprisionado e retoma à vida para vingar e enfrentar uma tal Sociedade da Justiça.
O roteiro de Adam Sztykiel, Rory Haines e Sohrab Noshirvani nada mais faz que alinhavar uns quantos acontecimentos e ordená-los de acordo com o manual mais elementar e entregar a história para ser filmada.
Com isso, não há muito que o diretor possa fazer. O garoto Amon se envolver na tal guerra tecnológica munido, apenas, de skate e esconderijo da hora é simpático, mas quanta situações iguais a essa foram vistas no cinema? Há uma cena digna e criativa quando Adam voa (em pé) no meio de escada em formato de caracol dentro de um edifício acompanhado de Amon e seu skate descendo degrau por degrau.
Por fim, um comentário que pode parecer aleatório, mas faz sentido nos turbulentos dias em que vivemos. O filme trabalha com os signos da guerra e da vingança. A fala de Gavião Negro (Aldis Hodge) de que chega para guerrear em busca de paz (também clichê) reitera o efêmero poder humano gerado a partir da violência, da imposição, da arma, da falta de caráter, do lucro e da sobreposição de um humano sobre outro.
Ocorre que sem conflito não há dramaturgia. É por isto que William Shakespeare segue imbatível 400 anos depois.
Para o bardo inglês, conflitos iluminam o entendimento das contradições humanas e, como se estivéssemos ante o espelho, temos a perfeita noção de quem somos e de como é possível buscar em nós mesmos algo que dignifique nossa condição.
“Adão Negro” nem resvala em Shakespeare. Serve para os humanos se dedicarem à sessão tarde rodeados de potes de pipoca – que pode ser prazeroso, mas nunca vai além da superfície.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
O filme está em cartaz nos cinemas