Quais os cuidados efetivos que o Estado oferece para a proteção da maternidade em situações de vulnerabilidade? Iniciar o texto com uma questão que nos força a refletir sobre um momento especial da vida de uma mulher e de uma criança que, neste caso, estão expostos a uma série de agentes nocivos à saúde da mãe e do bebê, como doenças infectocontagiosas, drogas ilícitas, álcool e tabagismo foi o que nos motivou a escrever este texto.
Com a alegação de primar pelo “melhor interesse e bem-estar da criança”, muitos bebês perdem o direito à convivência familiar quando as mães se encontram em situação de rua, por exemplo. O estigma e o preconceito são os principais motivos para que separações sumárias aconteçam desde a maternidade, desrespeitando assim, não apenas os direitos do recém-nascido, como também os da mãe.
Por outro lado, a crescente demanda de gestantes e mulheres no imediato puerpério em situação de rua e uso de substâncias psicoativas, associada à falta de investimento no cuidado psicossocial preventivo na manutenção do bebê junto a sua mãe, a preocupação com o crescente número de acolhimentos de crianças e a separação de suas mães a partir do nascimento, foram demandas que levaram à criação de um serviço especializado, novo e inovador na cidade de Campinas.
A gravidez e o puerpério são períodos que ressignificam a vida da mulher. Porém, para mulheres em vulnerabilidade e risco social, a chegada de um filho pode agravar suas necessidades e perpetuar ciclos de violência.
Com o objetivo de acolhê-las nesse período, a Casa das Gestantes, Puérperas e Bebês (CGPB), serviço criado e mantido pela Secretaria Municipal de Saúde de Campinas e executado, através de instrumento convenial, pelo Instituto Padre Haroldo, instituição conhecida e admirada pelas suas ações de benemerência, oferece moradia temporária e cuidados de saúde para mulheres nessa situação e aos seus bebês.
A casa foi adaptada para este fim e tem capacidade para acolher até 20 pessoas. As vagas são 100% reguladas pela Coordenadoria Setorial de Regulação e Acesso (CSRA) do município e devem atender os critérios técnicos e assistenciais previamente estabelecidos. Desde sua abertura, no final de 2015, a Casa da Gestante, Puérperas e Bebês vem sendo pensada e repensada, a partir dos desafios que foram aparecendo, sendo eles: a inclusão das mulheres em programas de saúde, educação e trabalho; e os recém-nascidos e bebês, em programas de acompanhamento de saúde e educação; e o trabalho cotidiano da equipe de profissionais da casa que visa a promoção de vínculos saudáveis e cuidados em saúde.
A missão da CGPB é acolher, em regime residencial, mulheres grávidas ou no puerpério (até 45 dias de pós parto), que estejam em situação de abuso de substância psicoativa, em situação de risco em saúde ou vulnerabilidade psicossocial grave, bem como seus outros filhos, de até 8 anos, por um período máximo de 18 meses, promovendo atenção integral à saúde dos acolhidos.
Desta forma busca a preservação do direito da criança à convivência familiar e comunitária e a reabilitação biopsicossocial da mãe, estimulando a geração de renda através de cursos profissionalizantes. O processo de cuidado baseia-se na construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), elaborados e desenvolvidos em reunião de equipe, com participação das mulheres e crianças, tendo como direcionamento, diretrizes propostas pelo Sistema Único de Saúde, a saber: diagnóstico situacional, definição de metas, divisão de responsabilidades e, por fim, a reavaliação sistemática de cada projeto construído.
Para cada diretriz são elaborados eixos de cuidado, a saber: saúde biopsicossocial, moradia, recurso financeiro, relação mãe/bebê, trabalho/estudo, reaproximação com rede social e familiar e, para cada eixo, são desenvolvidas estratégias específicas, a partir de cada núcleo profissional. Antes da alta da CGPB e com um tempo oportuno, a família deve ser inserida nos serviços do território, como saúde, assistência social, educação e outros, a fim de viabilizar o acompanhamento e manter o cuidado proposto junto ao PTS elaborado na CGPB, configurando uma alta responsabilizada e com transferência do cuidado.
Para alcançar essa alta responsabilizada, além das estratégias anteriormente citadas, a CGPB conta com uma modalidade ambulatorial de atendimento, seja na sede da Casa ou no território. Neste caso acontecendo como visita domiciliar à mulher ou a outras pessoas ligadas a ela e/ou serviços no território, seja da Saúde, Assistência Social ou Educação.
Trata-se de um seguimento, por um período de até 06 meses, em que as famílias que passaram pela CGPB, contam com o apoio da equipe para manutenção do cuidado anteriormente estabelecido e fortalecimento da rede de apoio intersetorial à família no território.
Até junho de 2022, ao todo, 183 pessoas já passaram pela organização, entre mulheres e crianças. O trabalho acontece em rede, e as mulheres que chegam à casa são encaminhadas por outros serviços de saúde, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Consultórios na Rua (serviço do Sistema Único de Saúde, voltado para pessoas em situação de rua) e Maternidades do Município.
Na Casa da Gestante, a equipe observa todo dia a importância de cuidar não apenas da criança, mas, também, da mãe desta criança.
Por isso é importante o desafio de pensar em novas políticas que se voltem não apenas para o bebê ou para a mãe, mas para o direito de ambos, o fortalecimento de vínculo e conseqüentemente no fortalecimento da saúde como um todo e quebra de ciclos que envolvem violência e abandono. Esta experiência inédita trouxe humanidade ao cuidado destas mulheres, reduziu de modo significante a morbidade e mortalidade materna bem como a adoção.
Para finalizar, gostaríamos de relatar que tudo começou com um parto realizado por um agente de segurança, em uma importante avenida de nossa cidade, e em uma mulher conhecida pelo sistema de saúde, mas que não havia tido oportunidade de ser adequadamente preparada para o momento do parto. A partir deste fato, “romanceado” pela sociedade, foi possível criar uma solução adequada aos direitos humanos das mães e dos bebes.
Esta experiência pode e deve ser replicada em outros municípios, dentro do SUS. As mulheres e seus bebês têm o direito a este acolhimento e cuidado especializado e humano.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020
Shirley Veronica Alves Franco é enfermeira, mestra em Saúde Pública e doutoranda em Clínica Médica da Unicamp.