Quantos de nós conseguem lembrar os números de telefone dos amigos, quantos conseguem ter em mente todas as senhas de acesso a cada aparelho? Não é apenas por falta de treinamento que não conseguimos nos lembrar de tudo, mas porque vivemos em um mundo altamente orientado por dados. Todos os dias somos imersos por informações em forma de dados, nós mesmos somos transformados em informações onde navegamos online para comprar algo, expressar nossas preferências, pesquisar o próximo destino de férias. O mundo mudou desde que se tornou possível traduzi-lo em bits e transferi-lo para hardware.
Os dados se tornaram uma das ferramentas mais poderosas para combater uma epidemia.
A primeira linha de defesa contra surtos de doenças infecciosas são os dados. Com a pandemia da doença de Covid-19, nos encontramos em uma situação não muito diferente das dificuldades do passado. Sem vacina ou acesso generalizado ao tratamento, nossa principal proteção era a coleta e a análise de dados para estudar as características e a disseminação do vírus, monitorar as respostas comportamentais das sociedades, ajudar a formular políticas públicas, e mais. O que é único na resposta à Covid-19 é que fomos capazes de alavancar uma ferramenta que não era tão robusta em pandemias anteriores: a “ revolução silenciosa de dados abertos”.
Um exemplo de uso de dados abertos tem sido a coleta de dados de diferentes fontes para construir mapas interativos capazes de fornecer atualizações diárias sobre o número de casos em cada país e no mundo. Por exemplo, pesquisadores da Universidade Johns Hopkins sintetizaram dados publicamente disponíveis de todo o mundo no painel de dados Covid-19, mostrando tendências nacionais e globais sobre casos, mortes, testes, hospitalizações e vacinas.
O projeto Nosso Mundo em Dados tem sido amplamente reconhecido por seus esforços na coleta, organização e apresentação de dados relacionados à pandemia de Covid-19. por meio de uma variedade de visualizações, gráficos interativos e artigos informativos que cobrem vários aspectos da pandemia, como número de casos, taxas de testes, progresso da vacinação e respostas políticas em diferentes países.
Esses exemplos ilustram como vários atores não governamentais, como acadêmicos, jornalistas e a comunidade de tecnologia, utilizaram efetivamente dados abertos para mostrar o impacto da pandemia, comunicar riscos ao público e promover análises rápidas por pesquisadores.
A pandemia de coronavírus revelou algumas lacunas cruciais na forma como coletamos dados durante uma epidemia emergente. Os órgãos públicos, no Brasil isto foi alarmante no âmbito do Ministério da Saúde, carecem de habilidades técnicas, infraestrutura de dados, compartilhamento e integração eficientes de informações e liberação efetiva de dados em formatos abertos e legíveis. A maioria dos dados de saúde pública durante surtos ainda está organizada em papel, caneta e PDFs contendo números e análises sem permitir que os usuários acessem os dados subjacentes, impedindo-os de examinar os dados, modelos epidemiológicos e outras previsões comportamentais usadas para a tomada de decisões.
A Covid-19 tem sido uma oportunidade para renovar a atenção no aprimoramento da qualidade, pontualidade e integridade dos dados de saúde produzidos pelo governo, fortalecendo as práticas existentes de gerenciamento de informações.
Por exemplo, com base em experiências de surtos anteriores, o Open Covid-19 Data Working Group optou por adotar uma metodologia de crowdsourcing. Eles reuniram uma equipe internacional de voluntários responsáveis por selecionar fontes de dados manualmente e organizar as informações em um formato padronizado. Esse formato permite a representação de dados epidemiológicos em nível de caso individual, facilitando a extração de informações notavelmente detalhadas sobre demografia de casos, históricos de viagens e distribuições geográficas de alta resolução.
Um aspecto especialmente significativo dessa abordagem é a triagem contínua em tempo real de várias fontes de informação, o que aumenta seu valor e a estabelece como uma ferramenta crucial para a vigilância de doenças. Para garantir sua eficácia, a iniciativa enfatiza fortemente o compartilhamento de dados por meio do Planilhas Google.
Para alcançar iniciativas de dados abertos bem-sucedidas, vários desafios relacionados à ingestão e curadoria de dados ainda persistem e enfrentá-los é de importância crucial para garantir que os dados abertos possam ser aproveitados durante futuras emergências de saúde pública.
Em primeiro lugar, é necessário garantir a qualidade, pontualidade, integridade e disponibilidade dos dados, fornecendo contexto e metadados suficientes (informações sobre os dados, como um livro de códigos, métodos de coleta de dados, cobertura, limitações e assim por diante) para garantir interpretações corretas dos dados pelos usuários finais. Além disso, princípios aprimorados relativos ao uso de dados e práticas gerais de compartilhamento de dados são essenciais, incorporando diretrizes para evitar o reforço de preconceitos existentes ou discriminação contra populações específicas com base em fatores como gênero, idade ou localização. Por exemplo, houve subnotificação de casos, principalmente onde havia disponibilidade limitada de testes.
Outra prioridade é desenvolver técnicas e regras para desidentificação de dados. Existe um risco significativo de reidentificação, despertando preocupações de pesquisadores acadêmicos e ativistas de direitos humanos em relação a questões de privacidade e liberdade civil. Da mesma forma, quando um surto foi rastreado até um ‘super espalhador’ que visitou uma boate LGBTQ, isso levou à estigmatização contra a comunidade LGBTQ.
Por fim, realizar todo o potencial dos dados abertos requer o desenvolvimento de um ecossistema de dados abertos que envolva ativamente diversos usuários de dados para aproveitar os dados para fins inovadores. Simplesmente publicar dados na web não é suficiente; políticas proativas são essenciais para promover uma rede colaborativa e interdependente de atores com diversos papéis e funções.
Pandemias futuras são inevitáveis, mas podemos reduzir o risco: uma mente verdadeiramente aberta pode ajudar os usuários a superar as barreiras geográficas, organizacionais e sociais existentes para acessar informações e possibilitar uma grande responsabilização e democratização da saúde pública.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.