Eu devia ter uns seis ou sete anos mas a imagem é muito nítida em minha memória de 62. Eu e meus pais tínhamos ido a um rancho com meus padrinhos no rio Grande, perto de Cássia, Minas Gerais. MEUS PADRINHOS em letra maiúscula porque eles foram mesmo padrinhos. Para qualquer hora, para qualquer situação. Inclusive aquela.
Na tarde anterior, meu padrinho tinha me ensinado como lançar a vara de pescar. Fiz o que ele pediu e deixamos a vara lá. Quando amanheceu, ele me chama e fomos lá ver o resultado. Eu tinha pescado um bagre! Uma das maiores alegrias da minha vida, pelo inusitado e nunca mais repetido.
Claro que tempos depois eu descobri. Foi o padrinho querido que tinha colocado o peixinho no anzol, para ver minha alegria. Como o Papai Noel que deixa o presente na noite anterior, sabe?
Mais tempos depois ainda, outra descoberta. Foi aquele gesto de amor extremo que me despertou para as questões da natureza.
Eu fiquei deslumbrado com aquela imensidão de água do rio Grande, um dos principais de Minas Gerais, fonte de água e energia elétrica para milhões de pessoas.
Sempre acompanho como está a vazão do rio Grande e de vez em quando o coração aperta, quando uma seca extrema atinge o seu curso d´água. Como no início de 2020, quando a sua vazão estava em 30%. No início de 2023 a situação era o contrário, com o índice chegando a 74,4% de volume útil, recorde histórico desde que as medições começaram.
Como todos os rios do Brasil, país com alma de água, 12% da água doce do planeta, o rio Grande tem sofrido, com certeza, com as variações derivadas das mudanças climáticas. Parece que o rio Grande, especificamente, está longe disso, mas são milhares de rios que somem todos os anos, nas diferentes regiões da Terra, em razão da seca extrema.
As estimativas são de que na região do Cerrado pelo menos 10 pequenos rios desaparecem anualmente, pela estiagem intensa e também pelo uso excessivo e práticas inadequadas de manejo e consumo. Em outras partes do mundo a situação é muito pior.
Os rios Reno e Danúbio, importantes fontes de abastecimento e transporte no coração da Europa, já sofreram com secas extremas. Os rios Tigre e Eufrates, considerados berços da civilização, são particularmente vulneráveis, às mudanças climáticas e a questões geopolíticas.
O Yangtzé, mais longo rio da China, também sofre regularmente com períodos de seca, levando a cortes de energia para milhões de pessoas e até ao fechamento de fábricas grandes.
O rio Colorado, fonte de abastecimento de água para sete estados e 30 povos indígenas no Sudoeste dos Estados Unidos, já perdeu 20% de sua vazão nas últimas décadas. A luta pelas suas águas é constante e litigiosa. São permanentes e cada vez mais árduas as negociações entre governo federal, estaduais, representantes indígenas e fazendeiros sobre as cotas disponíveis para cada um.
Fruto das mudanças climáticas, geleiras que alimentam rios da Ásia estão desaparecendo ou no mínimo sendo reduzidas rapidamente. Com isso, os rios declinam. O desmatamento é outra causa do desaparecimento de muitos rios. Com o desmatamento, morrem as nascentes, afetando o fluxo dos rios.
Os rios também somem literalmente do mapa por outras razões. O avanço das cidades é uma delas. Toda média ou grande cidade vive esse drama. Rios sendo canalizados para permitir a construção de avenidas, prédios e por aí vai.
Na cidade de São Paulo, rios e riachos estão sob importantes avenidas. O córrego da Traição, sob a avenida dos Bandeirantes. O rio da Mooca, sob a avenida Anhaia Mello. O córrego Antonico, sob a avenida João Jorge Saad. Etc etc.
Em Campinas, vários rios e ribeirões estão debaixo de ruas e avenidas. O córrego Tanquinho, com nascentes na altura do Largo do Pará, acompanha o trajeto da atual rua Barão de Jaguara. Ele está lá, quietinho, sob a montanha de asfalto e concreto. Basta uma chuva um pouco mais forte para ele voltar e inundar o centro da cidade, lembrando que ali é seu espaço original.
O desaparecimento de um rio é a morte gradativa, angustiante, de uma paisagem natural e também de uma paisagem afetiva. Isso ficou ainda mais claro para mim quando morei em Piracicaba, onde terminei a Faculdade de Jornalismo.
Foi na primeira metade da década de 1980, quando o rio Piracicaba sofria com múltiplas fontes de poluição, do esgoto urbano e industrial sem tratamento e dos resíduos do processamento da cana, em tempos de Proálcool. A legislação não era tão rígida, as tecnologias para reuso ainda estavam engatinhando.
Mas o povo de Piracicaba se ergueu e foi à luta em defesa do seu rio e da sua própria alma. O rio Piracicaba é a fonte cultural da cidade. Tudo que é importante transita no rio ou em torno dele, como a Festa do Divino, que tem quase 200 anos.
A mobilização teve resultado. A partir dela, foram construídas as estruturas de despoluição e gestão das águas em todo estado de São Paulo. Todos os paulistas devem muito ao que aconteceu naquele período histórico. O amor de Piracicaba pelo seu rio mexeu comigo e desde a Faculdade me interessei pelas coisas da natureza.
Mas hoje eu sei, a minha identidade com essas questões vem de mais longe ainda, e de algo mais profundo. Vem daquele peixinho que meu padrinho colocou na ponta de um anzol, na minha primeira e única pescaria. Aquele peixinho e aquele gesto tocaram meu eu mais íntimo.
Deve ser esse o mesmo motivo que tanta gente batalha para que o rio de sua infância, de sua vida, não desapareça. A velocidade da destruição tem sido maior, e somente no Brasil, o país, repito, com alma de água, 15% das áreas de água doce foram perdidas nos últimos 30 anos, conforme dados do MapBiomas. O Pantanal, maior planície inundável do mundo, é a região que mais sofreu, pelas já citadas causas: desmatamento, manejo agrícola inadequado…
Mas a motivação para que a luta continue é forte demais. Grande parte da humanidade cresceu ao lado de um rio. Quem quer ver o rio de sua infância desaparecer? E o seu rio, como está?
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]