Referir-se a um grupo etário como parte de uma geração é sempre problemático por conta das generalizações em que esse tipo de agrupamento incorre. Todavia, o estereótipo, por mais incompleto que seja, pode indicar tendências e características importantes a respeito do contexto histórico e cultural em que crianças e jovens desenvolvem suas personalidades e na forma como influenciam a produção da sociedade em que se inserem.
A geração Z, dos nascidos após os anos 2000, hoje é formada majoritariamente por adolescentes e jovens adultos, crianças que nasceram imersas na era informacional, com smartphones nas mãos e telas diante dos olhos, habitando realidades híbridas de limites cada vez mais tênues entre espaços físico-presenciais e digital-virtuais, mas cada vez mais abissais entre concentração de riqueza e devastadora miséria.
Entorpecida pela sobrecarga de informações e pela espetacularização da vida através das redes sociais, ou pela medicalização de qualquer comportamento considerado anormal ou atípico no funcionamento da sociedade do desempenho, a geração que atravessou parte de infância e da adolescência durante a pandemia da Covid-19 manifestou com intensidade sintomas que decorrem do imediatismo, do egocentrismo e do individualismo, mesmo que a partir de pontos de vistas completamente diferentes para aqueles que desfrutam de privilégios e aqueles que tiveram suas vidas ainda mais desumanizadas e mercantilizadas.
Rótulos como geração plástico-bolha e floco de neve passaram a ser usados para caracterizar de maneira pejorativa essas pessoas, criando teóricos antagonismos geracionais, como o aparecimento dos autodenominados red pills, ou despertados, durante a travessia da infinita ponte cronológica escorada pelo nostálgico tradicionalismo de valores conservadores e pelo desejo de alcançar ideais considerados progressistas na sempre relativa modernidade.
Tomando as analogias como referência, é possível pensar que, da mesma forma que cada floco de neve é único e possui beleza singular, muitas crianças e jovens têm buscado sua individualidade desde muito cedo. Apesar de se pensarem únicos e diferentes, acabam sendo forçados à uniformização posta tanto pelos padrões culturais (redes sociais, televisão, moda, igreja, escola, mercado de trabalho etc.) quanto pelos padrões de consumo (a forma de se vestir, destinos a se viajar, celulares e aplicativos a utilizar etc.). A onipresença de inteligências artificiais e bots nos ambientes virtuais tende a influenciar ainda mais na produção das subjetividades, forçando tendências e padrões comportamentais de forma sutil e camuflada, na positividade tóxica e na fantasia de controle e liberdade que nem todos percebem.
Além disso, chama a atenção a fragilidade dos flocos de neve, bem como a incapacidade emocional que parece cada vez maior e mais destrutiva entre pessoas que crescem sem aprender a lidar com adversidades, frustrações, imprevistos e obstáculos que se julgam incapazes de superar.
Não à toa, a OMS já faz referência à depressão e à ansiedade como o mal do século.
Da mesma forma que se desmancha o gelo quando abre o sol, mudam os gostos, desejos e vontades de pessoas superficiais e voláteis, acostumadas ao imediatismo e à velocidade instantânea dos fenômenos efêmeros da modernidade líquida, a que já se referia Zygmunt Bauman.
O termo plástico-bolha surge em alusão à presença de familiares superprotetores que exageram ao tentar livrar seus filhos de experiências que consideram nocivas, mas que, muitas vezes, são essenciais para que aprendam a viver em grupo, tolerando e respeitando diferenças, buscando caminhos para superar barreiras, levantar de tombos, negociar e resolver problemas inesperados e se adequar a situações que fogem do controle.
Imersas no consumismo, essas pessoas tendem a encantar-se pela novidade.
Todavia, ainda que se intitulem nativos digitais, com certa frequência são capazes apenas de retirar do plástico-bolha os produtos novos e, ao menor sinal de mau funcionamento, substituí-lo. A iniciativa de tentar fazer reparos, a curiosidade por compreender a forma como as máquinas operam, o ímpeto por tentar resolver problemas com intuição e criatividade – nada disso está à venda.
A euforia pelo prazer simples e leviano de estourar plástico-bolha também pode ser usada para pensar uma geração que se mostra tão insatisfeita com a realidade, mas tão pouco disponível a fazer algo para mudá-la. O tédio entre adolescentes é reclamação recorrente, não raramente superado apenas pela inércia de deixar as coisas exatamente como estão.
Dedicam-se a distrações virtuais por horas, mas se dizem sobrecarregados de afazeres e sempre sem tempo.
A tendência é que virem adultos habituados a utilizar seu tempo com coisas que tragam nada além de entretenimento e algum tipo de prazer momentâneo ou recompensa imediata. Pensar de forma crítica e reflexiva, questionar as próprias convicções através de pesquisas e estudos, desenvolver empatia, solidariedade ou aprofundar percepções superficiais é entediante.
Importante reforçar que nem todos os adolescentes e jovens adultos se encaixam nesses dois estereótipos. Na contramão da superproteção e da alienação do consumo e das realidades virtuais emergem lideranças jovens verdadeiramente preocupadas com o legado negativo de políticas e decisões que não se importam com a sobrevivência de outros seres vivos e com as futuras gerações, especialmente no que diz respeito às questões socioambientais e tecnoéticas.
São vozes dissonantes ocupando espaços de poder e decisão, provando que há, sim, muita vontade, capacidade e competência entre jovens do século XXI.
Todavia, o que pode ser a chance de superação dos fracassos do passado para uns, é visto como ameaça à manutenção de regalias cultivadas e herdadas há séculos por outros.
Diante das urgências trazidas pela fome, pela violência, pelo desabrigo e pelos imperativos do capitalismo, a infância e a adolescência de pessoas em vulnerabilidade socioeconômica quase não deixa brechas para que a criatividade possa se desenvolver, asfixiando o potencial transformador e subversivo das vozes, mãos e pés que movem o mundo de baixo para cima, condicionando a naturalizar a exploração e a escassez como a normalidade da vida, atenuada, quando muito, pela ilusória sensação de inclusão através da fama e da ostentação do consumo.
Há, ainda, jovens conservadores que, paradoxalmente, se enxergam descolados do sistema que pretendem preservar, ou do passado retrógrado que buscam resgatar, por suporem que estão despertos diante da realidade configurada pelas instituições, tal como os personagens que tomam a pílula vermelha em Matrix (1999), clássico da ficção cyberpunk dos anos 2000. Chamados de red pills, têm enorme dificuldade em compreender que é preciso conhecer Platão e Baudrillard para ler as entrelinhas da produção revolucionária das irmãs transgênero Lana e Lilly Wachowski, que também foram roteiristas e produtoras de V de Vingança (2005), com duras críticas ao autoritarismo nacional-teocrático (o mesmo que Marx, Bakunin e Proudhon criticavam).
Tampouco percebem que “Another Brick in the Wall”, obra imortal de Pink Floyd (1979), é uma afronta ao conservadorismo e à moralidade deturpada pela intolerância e pelos preconceitos perpetuados pelo racismo, pelo machismo, pela homotransfobia, pelo capacitismo, pelo ultranacionalismo e pelos totalitarismos.
Não se dão conta que também são alvo das muitas violências que defendem e praticam, fazendo apologia à estética supremacista de corpos eugênicos e armas de fogo, numa completa inversão dos propósitos anarquistas de genuína liberdade.
De um jeito ou de outro, fica claro que manter uma estrutura sociocultural tal como está beneficia àqueles que hoje se privilegiam seja pela ignorância, pela letargia, pela fragilidade emocional, incapacidade intelectual, exploração socioeconômica ou repressão militar diante da resistência por parte dos explorados e controlados.
Todavia, vale a pena reforçar: estereótipos estão longe de ser um destino obrigatório. Que sejam, então, um alerta.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.