A manhã sempre bate no meu travesseiro. Ou na porta da fresta da janela – que não fechei adequadamente. E um sussurro de sol passa por um céu anuviado e trato de levar o passarinho para pegar uma lesga que seja de calor na barra da varanda. O nome dele é Levi Ramiro, uma pequena homenagem ao grande violeiro, amigo e parceiro. Já tive um outro passarinho. Era o Dércio Marques. E ambos morreram quase ao mesmo tempo dos grandes andarilhos das canções brasileiras.
Passarinho e violeiro são milagres da natureza musical: um com tanta pena e o outro cantando as penas de todos nós.
Já ando embengalado pelos tempos vividos e não reclamo mais dos buracos das calçadas, dos motoristas que atravessam a faixa de pedestre, rápidos e celerados atrás de segundos de pressa que, bem posso dizer, irão ao encontro da Morte, a Senhora de Todos Os Apressados. Olho à direita, à esquerda, e aguardo o momento da travessia. E acho que a Prefeitura deveria criar um crachá para pedestres profissionais. Bem grande e vistoso, assim como a camisa da Ponte Preta. Quanto aos pedestres amadores, sempre apressados, e sempre atravessando avenidas sem respeitar a faixa de pedestres, bem, que os padres da cidade lhes dediquem os melhores anjos da guarda.
Aliás, na minha adolescência conheci um guarda civil que cuidava do cruzamento da Glicério com a General Osório. Ele era o semáforo da esquina. Certa vez, um motorista parou em cima da faixa de pedestre e ele abriu as portas traseiras do cadilaque e pediu para que todos passassem por dentro do carro. Eu pensei em participar daquela aula pedagógica de trânsito, mas a timidez dos meus doze anos me impediu.
Não sei o que me levou a lembrar tal acontecimento. Embora tenha sido um acontecimento.
E também não importa a ninguém o que aconteceu com o fechamento da boate El Cairo. A casa ficava na esquina da Barão de Jaguara com a Benjamin Constant – onde hoje funciona uma elegante casa de roupas. Dizem que o novo dono da boate não frequentava a igreja e tampouco contribuía para o cofre da mesma.
Forças divinas trataram de secar o lugar com rezas e forças políticas. E eu perdi meu emprego de cantor; e muitas moças de vida difícil tiveram suas vidas ainda mais complicadas, buscando clientelas estranhas pelas esquinas centrais da cidade.
Estamos todos nós a sós pelas ruas da cidade. Muitos pelos seus escritórios de acordos espúrios, pelas mesas de restaurantes que, além da boa comida, oferecem um certo ar de cordialidade e confiabilidade social aos corruptos políticos. A mesma calçada que piso já foi trilhada por gente bandida. E a calçada não tem nada a ver com os bandidos da cidade. E assim trato de lavar com álcool as solas do meu sapato antes de entrar em casa.
Mulheres usam calcinha e homens, cueca. E todos, agora, usam máscara. Sempre carrego uma no carro e outra no rosto. Sem contar as que tenho em casa.
Máscara é uma vestimenta que a civilidade há de exigir de todos nós, assim como fazem os japoneses desde a segunda guerra mundial.
Batom, desodorante, água de colônia, perfume, rímel, não há ninguém que não use tais produtos. Qual é o problema em usar máscara quando se está resfriado, gripado? E a bem dizer, máscara esconde a nossa feiura pelas ruas da cidade.
Brinco com a nossa pandemia porque não posso fazer nada além de enfrentar os novos tempos com um pouco de bom humor.
É o que está faltando atualmente: encarar a vida que temos de levar, sem levar o fardo da impaciência.
É a notícia que dou. Nem tudo é o que parece. Vamos em frente e achando que a vida é um grande baile de máscara – o que não deixa de ser verdade, pois mesmo sem máscara muitos se mascaram em frases bem-feitas, políticos falantes, e, bem, um presidente da república desmascarado pela sua incompetência de governar nossas vidas. É o único sem máscara que anda por aí. E mesmo assim dono da caneta que assina o nosso futuro. Até quando?
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico