Débora Falabella é uma atriz de indiscutíveis recursos técnicos e de enorme talento. Com 42 anos, mantém a cara de menina que lhe permitiu protagonizar a jovem e a adulta Dani em Depois a Louca Sou Eu (Brasil, 2021, 91 min.), de Júlia Rezende. E que prazer vê-la atuar. Ela trafega com extrema habilidade no papel de uma mulher que alterna depressão e euforia e todas as nuances entre os dois extemos e expressa, no rosto e nos gestos e com idêntica qualidade e convencimento, as intenções da personagem.
Não bastasse, Débora tem no próprio corpo um aliado vigoroso. Diferentemente do teatro, que exige persuasivo trabalho porque este se encontra exposto o tempo todo, no cinema, o diretor e o editor podem se dar ao direito de selecionar as imagens e, quase sempre, a prioridade é o rosto. Em Depois a Louca Sou Eu, Júlia Rezende explora os movimentos do corpo da atriz porque esta sabe usá-lo devidamente como linguagem, seja em uma dança, nos diversos ataques de pânico, seja para embelezar coreografias sexuais ou em sequências corriqueiras nas quais uma atriz comum faria o óbvio. Débora, ao contrário, utiliza-o como recurso para enriquecer a mise-en-scène, o que, no cinema, é um luxo. Mérito dela e de Júlia Rezende.
Os merecidos elogios ao trabalho da atriz devem ser divididos com a diretora, com o roteirista Gustavo Lipstzein, que adaptou o livro homônimo e autobiográfico de Tati Bernardi (Companhia das Letras, 2016), e com a própria escritora.
Aos 35 anos, Júlia tem carreira invejável em se tratando de cinema brasileiro, pois chegou ao oitavo longa-metragem nos quais, no geral, acentua o humor. Aqui, ela mistura gêneros. Trata-se de filme dramático sem ser trágico e bem-humorado sem se assumir como comédia. Impossível rir da sensação de Dani de se identificar como figura “estranha”, da insegurança, da luta contra remédios e do desajuste social. A cena aflitiva dela sozinha na noite da cidade depois de ser dispensada pelo namorado é um bom exemplo.
E impossível não rir das reuniões envolvendo telenovelas nas quais participou como autora ou das terapias alternativas. Júlia entrega ao espectador uma narrativa fluida, sem invenções, mas, segura, plasticamente bonita e com locações e posições de câmera que fogem ao banal. Gustavo se apropria, também com segurança, do livro e cria um roteiro que obedece a técnica da escrita e desenvolve alguns momentos de tensão e muitos de desconcerto absoluto, como a desastrada entrevista em programa de TV, e acerta no uso do rico material de histórias do livro. Tati Bernardi apresenta um texto cheio de boas tiradas, irônico e sagaz e, com isso, permite que os diálogos (quase sempre deficitários no cinema nacional) se destaquem.
Com todas estas qualidades, o filme ainda se sobressai por uma edição que respeita o tempo da cena e dispensa o ritmo acelerado. Ele tem o ritmo dele – em perfeita sintonia com o espírito do texto. E com dois complementos importantes: possui saborosa e diversificada trilha assinada por Berna Ceppas e o trabalho eficiente dos coadjuvantes Yara de Novaes (Sílvia, a mãe) e Gustavo Vaz (Gilberto, o namorado).
Clique aqui para ver o trailer do filme https://www.youtube.com/watch?v=IO2ATZzTM7s
Quem trabalha com criação sabe o quão difícil é começar e terminar bem um trabalho – em geral há certo desequilíbrio nestes que são os pontos cruciais da narrativa. Pois nisto também o filme acerta. Podia ser careta ou não querer abrir do espírito libertário de Dani e transformá-la em personagem incapaz de encontrar saídas. Pois o desfecho aposta no tom simpático e esperançoso passando longe do piegas.
Animador que em um ano tão desesperançado possamos ver um filme nacional que mistura drama e comédia e não cai na facilidade preguiçosa de explorar humor grosseiro ou drama convencional. Depois a Louca Sou Eu nada tem de humor tosco ou drama corriqueiro. Antes, é um pequeno retrato das nossas grandes loucuras.
Disponível na Amazon Prime Vídeo. Classificação: 16 anos
João Nunes é jornalista e crítico de cinema