Vamos fazer uma viagem no tempo e em ótima companhia. Na edição de 24 de maio de 1952, a revista “O Cruzeiro”, na época um dos mais respeitados veículos de comunicação brasileiros, publicou a crônica “Rumo ao Sul (II)”, parte de uma série assinada pela escritora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), relatando a viagem que havia feito ao “Sul” do país. Na realidade, o Sudeste, e nesse texto a autora de “O Quinze” contou sobre sua estadia em Campinas. Quando escreveu a crônica, Rachel nem imaginava a polêmica que estava fomentando!
Disse ela sobre a cidade: “Quem conhece Campinas pela sua fama de progresso e riqueza, por aquele título de Princesa do Oeste – e espera, portanto, no primeiro encontro, deparar com uma cidade violentamente moderna, febril de construções, abrindo ruas às pressas, disputando o primeiro lugar na corrida das cidades paulistas – tem uma grande surpresa. Campinas é uma fidalga consciente dos seus pergaminhos, e não tem preocupações de novo-rico com fachadas e aparências”.
E atenção para o que vem a seguir: “Mantém caprichosamente os seus casarões do tempo do Imperador, suas ruas estreitíssimas, seus jardins públicos à moda antiga. Campinas sabe o que vale, Campinas não entra em páreo nenhum. E só isso já é motivo para um caso de amor à primeira vista. Outro motivo é o bosque, chamado dos dos Jequitibás, floresta emaranhada e linda, rasgada de veredas e recantos, que é o orgulho dos campineiros. E com todo o fundamento. O velho teatro, a velha estação do trem, são mantidos tais como o fizeram, no século passado. Ninguém achou necessário derrubá-lo, construir estação nova de cimento e vidro; assim sempre foi, assim que está bem. Fora do centro é que a cidade se rasga em amplos planos, constrói casas modernas, ricas, algumas bonitas – adere ao progresso”.
Claro, hoje resta muito pouco do que Rachel de Queiroz descreveu. Sobre o teatro, em particular, que tristeza. O Teatro Municipal Carlos Gomes, que ela conheceu, viria abaixo pouco mais de uma década depois da visita à cidade.
Mas vamos à polêmica que o texto da escritora cearense motivou na época. Rachel recebeu várias cartas comentando a crônica, algumas aplaudindo, outras, criticando e muito. Eram mensagens de lamento por ela ter evidenciado a Campinas “antiga”, “ultrapassada”, e não aquela que já caminhava firme para o futuro, a “moderna”, “progressista”.
A escritora não negou entrar na briga e em 19 de julho de 1952 publicou outra crônica em “O Cruzeiro”. E não se fez de rogada, ao sintetizar, depois de uma longa defesa do “antigo”, “ultrapassado”: “a esses só tenho uma coisa a dizer: vocês não mereciam a honra de ser campineiros…”
Palavras duras, com certeza, mas a controvérsia deflagrada por Rachel de Queiroz soa muito atual, sete décadas depois, e provavelmente continuará assim por mais algum tempo. Ocorre que Campinas, como toda grande cidade brasileira, tem diante de si o grande desafio de refletir sobre como quer continuar crescendo.
Será à custa de sacrificar nascentes de água e pequenos riachos, que acabam sendo soterrados sob asfalto e cimento, como já aconteceu tantas vezes – e a cidade apenas se lembra disso quando, após fortes chuvas, o rio escondido teima em reaparecer?
O crescimento também será à custa da derrubada de casarões antigos, verdadeiros patrimônios históricos e culturais, ainda que não sejam reconhecidos como tal pelos órgãos oficiais?
Nesse aspecto é crucial salientar que existe conexão, sim, entre a fundamental preservação do patrimônio histórico e cultural e o que hoje é denominado como sustentabilidade. Pois o desenvolvimento sustentável é, em resumo, garantir o desenvolvimento de uma de uma comunidade, uma cidade, um país, protegendo ou utilizando os recursos de hoje de modo a beneficiar as atuais e as futuras gerações.
Ora, o patrimônio histórico, arquitetônico, cultural, é um dos principais recursos que a comunidade pode ter. Ele é o reflexo da cultura, do modo de vida, dessa comunidade em um determinado período. Faz parte das raízes mais profundas dessa comunidade. Não proteger, não preservar ou, pior, eliminar esse patrimônio, significa extinguir uma história, uma narrativa, que fornece sentido e sensação de pertencimento.
A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, ou Carta de Paris, como é conhecida, aprovada em 1972 na capital francesa, em assembleia da Unesco, é muito clara a respeito. O documento fala em patrimônio natural e cultural, ambos em pé de igualdade. Tanto que a Unesco classifica como patrimônio da humanidade tanto Olinda e Ouro Preto como Reservas de Mata Atlântica e o Parque Nacional do Pantanal, tanto os recentes Conjunto Arquitetônico da Pampulha e Paraty como os Parques Nacionais de Chapada dos Veadeiros e das Emas. Para ficarmos somente em exemplos no Brasil.
Em resumo, proteger o patrimônio histórico, cultural e arquitetônico é parte integrante do que se entende por promover o desenvolvimento sustentável, a sustentabilidade. Quem pensa o contrário sabe disso.
Muitos dos que defendem um progresso a qualquer custo no Brasil são os mesmos que se derretem quando vão à Europa e apreciam toda aquela beleza histórica preservada – e fonte de renda pelo turismo! Isso é sustentabilidade, é garantir o uso de um recurso de forma perene, ou no mínimo por muito tempo!
São vários os casos de sítios históricos que, degradados, foram recuperados e se transformaram em grande atração turística. Puerto Madero em Buenos Aires, Museu Cais do Sertão em Recife, bairros inteiros em Lisboa, Barcelona… O Pelourinho, em Salvador, passa por processo semelhante.
Campinas tem um patrimônio cultural e arquitetônico de enorme valor histórico. Infelizmente alguns itens desse patrimônio não existem mais, como o citado Teatro Municipal e seu antecessor, o Teatro São Carlos, talvez o maior símbolo da época do auge do café na cidade.
Outros bens históricos apenas continuam de pé em razão de um forte movimento comunitário. Caso concreto do Palácio dos Azulejos, antiga residência de Joaquim Ferreira Penteado e família e que depois foi sede da Prefeitura, da Sanasa e hoje abriga o Museu da Imagem e do Som.
Alguns anos depois da visita de Rachel de Queiroz à cidade, o Palácio dos Azulejos esteve sob sério risco de demolição. Foi na época em que Campinas viveu uma febre de derrubada de prédios antigos, como a Igreja do Rosário, no Largo do mesmo nome, e o citado Teatro Municipal Carlos Gomes.
Houve entretanto uma forte reação, de vários segmentos, envolvendo figuras ilustres como o poeta campineiro Guilherme de Almeida. Assim escreveu o “Príncipe dos Poetas Brasileiros” em 26 de novembro de 1967, no “Diário do Povo”: “Era aquela nobre mansão, exatamente aquele que há quase vinte anos eu evocara e invocara nos meus artigos no Diário de S.Paulo, como modelo perfeito de nossa melhor arquitetura monárquica, no qual se instalou a Prefeitura Municipal de Campinas, e hoje segundo me informam (“horresco referens”) as picaretas oficiais estão querendo trabalhar, digo, “trebelhar”. Será possível?… Não posso crer”.
Com forte apoio de muitos, o Palácio dos Azulejos permaneceu de pé, tendo sido tombado pelo patrimônio histórico federal (1967), estadual (1970) e municipal (1988). Com a ação do prefeito Antônio da Costa Santos, nos poucos meses de seu mandato, e a intervenção da Associação Comercial e Industrial de Campinas (ACIC), parte importante do Palácio foi restaurada, o mesmo ocorrendo com a Catedral de Nossa Senhora da Conceição.
Em 2024 Campinas chegará aos 250 anos.
Momento mais do que especial para pensar sobre o futuro, de olho atento ao que pode e deve ser preservado, de novo, para o bem das atuais e futuras gerações. É o que pede o sentido mais profundo da sustentabilidade.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]