O que tem mais importância para você: seu cartão de crédito ou sua certidão de nascimento? A carteira de habilitação ou o documento de identidade? O celular, que possui a versão digital da nossa vida inteira, talvez? Com exceção da última, quem trazia essas provocações já na década de 1980 era a professora Maria da Conceição Tavares, economista e matemática luso-brasileira, que alertava sobre como o capitalismo fazia de nós cada vez menos cidadãos e cada vez mais consumidores na busca e no exercício de nossas liberdades.
As possibilidades trazidas pela era industrial e pelas inovações tecnológicas podem ser representadas, de forma emblemática, pelo automóvel. A promessa de popularização do carro prometia democratizar e facilitar o tão conclamado direito de ir-e-vir. A lógica da charrete e da carruagem foi sendo transformada pelo desejo de autonomia e independência de possuir e conduzir seu próprio veículo, materializando e mercantilizando a ideia de liberdade, à venda a quem pudesse comprá-la. O smartphone cumpre esse papel simbólico no século XXI, intermediário da navegação supostamente controlada pelos usuários das redes informacionais.
Na confluência da teoria liberal e do funcionamento do mundo real, todavia, contradições essenciais permanecem nas raízes dos problemas sociais. Compra-se o carro, mas não o direito de ir e vir com segurança num mundo cheio de intolerância e violência. Compra-se o celular, mas não a capacidade de compreender de forma crítica e reflexiva as informações ali encontradas em meio a discurso de ódio, negacionismo e propaganda.
Compra-se o acesso às redes sociais e até mesmo a fantasia de viver vidas virtuais, mas não o afeto das relações interpessoais e a satisfação de estar na companhia da família e dos amigos no conforto de um lar acolhedor. Compra-se fama e popularidade, mas não autoaceitação, autoestima e, principalmente, felicidade. Compra-se velocidade, mas não é possível desacelerar o tempo para aproveitar os momentos que vão sendo consumidos na obsessão por novidades.
Um século depois da vertiginosa ascensão do Fordismo nos EUA durante a primeira guerra mundial (e pelo menos quatro graves crises econômicas estruturais causadas pela especulação financeira desde então), testemunhamos o desejo da autonomia ser substituído pela lógica da automatização e da uberização, trazendo ao século XXI o cocheiro como condutor de aplicativo, e o cartão de crédito, substituto do ouro e do papel-moeda, trocado pelo PIX, por criptomoedas ou recompensas intangíveis em jogos virtuais, com estrelinhas douradas e pontuação infinita em rankings que estimulam a competição numa rotina de autoexploração disfarçada de entretenimento.
Até mesmo a capacidade de imaginação, criatividade e decisão tende a ser terceirizada a simuladores de inteligência artificial enquanto aceitamos o controle absoluto sobre nossa identidade e formas de expressão. Cada vez mais consumidores, espectadores. Cada vez menos cidadãos, protagonistas.
Na penumbra da vida dupla que leva o consumidor-cidadão, nem sempre fica claro que tempo não é dinheiro. Tempo é muito mais precioso, importante e raro que dinheiro. Nem mesmo com todo dinheiro do mundo é possível fazer o tempo voltar ou, sequer, durar mais. E quanto tempo as pessoas são forçadas a dedicar na realização de trabalhos estigmatizados, com remunerações injustas e condições precárias, para garantir o mínimo para sobrevivência, como moradia, alimentação e saúde?
E no tempo que “sobra” somos induzidos, novamente, ao consumo: seja no shopping, nos stories do smartphone, nos aplicativos de comunicação cheios de factoides e notícias falsas, mensagens aceleradas respondidas na mesma velocidade, sempre com urgência, raramente tendo algo realmente importante a dizer.
Até pouco tempo atrás, pessoas com deficiência ou limitações para desempenhar o papel de mão-de-obra e força de trabalho eram chamadas de indigentes. Hoje, mesmo as que trabalham, continuam tendo sua cidadania condicionada ao poder de consumo.
Quando restará tempo para exercermos, sem discriminação e incondicionalmente, a cidadania? Ocupar espaços de convivência, cooperação e solidariedade, desfrutar da natureza anterior à mercantilização do mundo, estar presente na vida e nos momentos de pessoas queridas, contemplar a criatividade humana através das artes, viver as experiências que jamais poderão ser compradas ou artificializadas.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.