Em 2017 foi lançado um documentário que retrata a realidade da educação pública brasileira pelos olhos dos estudantes, gestores, professores e especialistas, chamado “Nunca me Sonharam”, dirigido por Cacau Rhoden. Assim que assisti, senti uma ausência relacionada ao ensino público e uma urgência, necessidade de atenção e cuidado.
Eu entendia cada palavra dita por aqueles alunos, porque também sempre fui estudante de escola pública e realmente o sistema não “sonha a gente”, seja por falta de recurso, didática ou visão de mundo. Em muitos casos, só aguardamos a aprovação. Mesmo com muita gente capacitada e esforçada para fazer a educação pública dar certo, ainda temos um longo caminho pela frente.
Quando falo de educação pública me refiro aos anos iniciais até o terceiro ano do ensino médio, hoje com acesso à melhor universidade da América Latina (Unicamp) entendo que existe sim qualidade no público – só não chega pra todo mundo. Contraditório, né? O “público” que só não é pago, mas está para uma parcela muito específica, quase modelada.
Voltando à escola pública: A culpa não é do professor que precisa dar conta de uma sala com 40 alunos, corrigir centenas de trabalhos e provas, levar trabalho pra casa, trabalhar de manhã, à tarde, à noite e não ser bem remunerado, nem do diretor que tem uma demanda (não só administrativa) gigantesca.
Devemos olhar com criticidade para esse ciclo vicioso do sistema que está sucateando a educação pública há anos.
Eu sei, é repetitivo e talvez exaustivo falar toda hora de resistência, mas viver a resistência também é isso: entender o peso de cada ação que vai na contramão do esperado, e para o aluno da escola pública sonhar e ser sonhado são essas “ações”.
Semana passada terminei de ler o livro “Cartas Para Minha Vó” de Djamila Ribeiro.
O livro chegou pra mim pelas mãos da própria autora, eu estava vivendo uma surpresa num programa de TV. Demorou um tempo para minha ficha cair e entender que tudo estava realmente acontecendo. Algumas semanas antes os produtores do programa entraram em contato comigo falando que eram de um jornal da região e que gostariam de gravar uma matéria, fomos levados para São Paulo (meus pais e eu) e tudo aconteceu. Em determinado momento, o apresentador comentou sobre uma pessoa que eu era muito fã, Djamila Ribeiro! O Rodrigo Faro disse que ela havia gravado um vídeo parabenizando minha jornada… fiquei incrédula, ela não gravou o vídeo… ela foi até o programa me conhecer!
Naquele dia, ouvi algo muito potente, a professora, ativista, filósofa que eu tanto admiro me disse que eu sou o sonho de nossas ancestrais. Fiquei pensando sobre isso: alguém me sonhou! No livro de Djamila ela conta sobre sua jornada por meio de cartas para dona Antônia (sua avó) e compartilha como a relação entre as gerações (avó, mãe e filha) contribuiu para o molde de sua conexão com a ancestralidade e permitiu que ela enxergasse o mundo de maneira diferente.
Não quero contrariar o documentário maravilhoso dirigido por Cacau Rhoden e bater o pé dizendo que fui sonhada sim e ponto final. Quero dialogar sobre nossa pluralidade e destacar esse “sonhador” das duas frases através da pergunta: quem que nunca me sonhou?
Djamila destaca em seu livro que as mulheres de sua família sempre fizeram jarras de limonadas com os limões que a vida oferece, mulheres de gerações, ancestrais que guiam sua jornada e a protegem.
Imagino Tereza de Benguela liderando aquele grande quilombo, passando noites sonhando com gerações que lutassem por uma nação mais igualitária, Dandara dos Palmares sonhando com mulheres que fossem donas de seus próprios corpos, com comunidades que fossem na contramão dos bandeirantes e resistissem.
Mulheres, rainhas que o sistema escravocrata tomou o nome e foram trazidas em navios negreiros, posso vê-las sonhando com as filhas de suas filhas livres e encorajadas para mudar o mundo.
A resposta para minha própria pergunta não poderia ser outra: Eles nunca me sonharam, mas minhas ancestrais sim!
Majori Silva, 22 anos, é escritora e lidera um coletivo na gestão de uma biblioteca comunitária