Se você nunca leu nada a respeito da cidade de Ratanabá, suposta “capital” do planeta Terra, localizada sob a floresta Amazônica, abrigo de uma civilização que teria existido há 450 milhões de anos (milhões, isso mesmo!), não se preocupe: é sinal de que os tentáculos de dispersão das fake news criadas por grupos políticos fundamentalistas ainda não te alcançaram.
Os limites entre as realidades paralelas, sustentadas por mentiras absurdas e delirantes, e a percepção da realidade a partir da ciência, entretanto, parecem cada vez mais borrados – e não é de hoje que a pós-verdade ameaça nos forçar na contramão do progresso científico, tecnológico e humanista, em direção aos porões sombrios do obscurantismo e da ignorância voluntária exumada por setores que se utilizam de especulação e desinformação para manipular a opinião popular e estabelecer o controle através da emoção, e não da razão.
A era informacional e a democratização do acesso aos meios de comunicação multidirecionais e dinâmicos, como a internet, tem destacado a inclinação de boa parte das pessoas por acreditar em versões e informações que reforçam suas crenças e convicções pessoais, mesmo que isso contrarie evidências científicas e teses apresentadas por especialistas, centros de pesquisa e a comunidade científica internacional.
Estudos e evidências geológicas sustentam, por exemplo, que 450 milhões de anos atrás a Terra passava pelo período Ordoviciano, quando a vida se resumia a animais invertebrados e algas marinhas povoando oceanos, essencialmente. Não havia floresta Amazônica e muito menos qualquer forma de vida sequer parecida com a humanidade. Os dinossauros e os mamíferos primitivos (muito diferentes dos atuais) surgiriam só 200 milhões de anos mais tarde.
A título de comparação, algumas das mais antigas civilizações humanas (Maias, Hindus, Gregos, Mesopotâmicos e Egípcios) datam de cerca de 5 mil anos atrás (mil mesmo, não milhões). As datas estimadas se baseiam em testes que analisam a composição físico-química de fósseis e materiais encontrados em sítios arqueológicos, datados a partir dos padrões de decaimento radioativo de elementos como o carbono. Mas nada disso importa para quem está convencido (e cego) sobre aquilo que deseja ouvir.
O fundamentalismo ideológico se sustenta por tabus, dogmas e falsas certezas absolutas ditadas por lideranças mitificadas, intencionalmente fabricadas para promover a alienação através do medo, do espetáculo, dos delírios coletivos. E isso pode ser exemplificado por mentiras mais sutis que Ratanabá: a invasão de Cuba ao Brasil, fraudes em urnas eletrônicas hackeadas, distribuição de “kit gay” em escolas, a fabricação chinesa do coronavírus, nanochips russos em vacinas que alteram o DNA humano.
Essas e tantas outras bizarrices, por mais aleatórias que pareçam, cumprem o propósito a que servem: fomentar a desconfiança na ciência, desmoralizar a educação crítico-reflexiva, desestabilizar pactos e contratos sociais democráticos, deslegitimar o pensamento baseado na razão, inventar distrações que desviam dos problemas reais e justificar o abuso de poder para resolver aqueles que sequer existem.
Ao pautar a mirabolante cidade digna de delírios Terra-planistas, os articuladores dessa estratégia sufocam temas como o aumento da violência contra povos indígenas e o assassinato de ambientalistas na Amazônia, o intenso desmatamento da floresta enquanto avançam o agronegócio e o garimpo ilegal em áreas de preservação, as alianças entre milicianos e narcotraficantes nas fronteiras brasileiras e os colapsos socioambientais decorrentes dessa lógica predatória. Nada disso parece tão interessante ou “realista” quanto as fantasias usadas para inflar o ego dos ingênuos e empoderar tiranos, corruptos e mentirosos.
Em 2015, Umberto Eco afirmou que as redes sociais (principal meio de difusão de fake news atualmente) deram voz a uma legião de imbecis. Mas nem por isso devemos nos sentir forçados a ouvi-los.
Para isso é preciso cultivar e desenvolver competências e habilidades que nos permitam filtrar, com discernimento e bom senso, as informações que chegam até nós o tempo todo. Esse processo ocorre principalmente através da educação, do diálogo, do exercício consciente da cidadania democrática. Não à toa, governos fundamentalistas defendem tanto a censura, a repressão e o controle das ideias.
Será que daqui a quinhentos ou dois mil anos seremos lembrados pelas civilizações que nos sucederem não como os pioneiros na exploração do universo e de outras dimensões, mas como os idiotas que decidiram voltar à idade das trevas? Nesse caso, no pior dos otimismos fatalistas, é possível apostar que sequer haverá humanidade para avaliar os equívocos do nosso tempo.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.