Entre os votos que vieram com a chegada de 2022, é possível que “saúde” tenha sido o mais desejado. Não é para menos: com a persistência da Covid-19 através de novas variantes, as restrições sanitárias impostas pela pandemia que já chega a dois anos continuam a trazer enormes transtornos na luta contra o vírus que já vitimou mais de 5,5 milhões de pessoas no mundo.
No Brasil, a chegada da variante Ômicron reacende o debate que há muito já deveria ter sido superado, com a palavra final dada a especialistas e instituições científicas que reconhecem como estratégia mais eficiente de prevenção ao vírus a vacinação, o uso de máscaras em ambientes coletivos e a atenção à higiene pessoal. Todavia, enquanto o negacionismo continua a ser sustentado por notícias falsas e conspiracionismo mal intencionado, a discussão mais ampla e profunda sobre a saúde é deixada de lado.
Saúde para quem? Saúde para quê?
A imprevisível e incontrolável pandemia que assola países do mundo todo desde o ano retrasado tem esgarçado limites estruturantes das sociedades contemporâneas e é de se espantar que a busca quase obsessiva por retomar a “normalidade” de um sistema fadado ao fracasso se imponha em detrimento da urgência de repensar práticas que, muito antes do caos sanitário trazido pelo novo coronavírus, já deveriam ter sido subvertidas.
A discussão, recentemente, tem sido sobre o tempo de afastamento do trabalho a que uma pessoa teria direito quando diagnosticada com Covid ou gripe comum (causada pelo vírus Influenza, não pelo coronavírus). A destruição de garantias sociais e trabalhistas encurta a discussão: tempo nenhum, afinal pode-se trabalhar “de casa” enquanto cumpre-se “repouso”; ou o tempo que for, já que os “empreendedores” têm autonomia para trabalhar quando e o quanto quiserem, sob risco de ficar sem renda na impossibilidade de realizar suas tarefas com febre, dores e falta de ar. Caso pereçam, desde que não onerem o Estado ou o mercado, são substituíveis, descartáveis, como já deram a entender líderes políticos e megaempresários.
Sintomas como cansaço excessivo, exaustão, ansiedade e depressão passam a compor o diagnóstico das doenças do nosso século.
Será mesmo culpa de algum vírus esse mal-estar de que sofremos com cada vez mais frequência? Temos que revezar entre respirar ar poluído e ar condicionado; tomar água contaminada ou cheia de açúcares e corante; para evitar a fome, pagar cada vez mais caro por alimentos artificiais ultraprocessados, nascidos de sementes transgênicas embebidas em agrotóxicos. E o sorriso remendado com medicamentos, procedimentos cirúrgicos, torpor e euforia de charlatanismo dito transcendental.
Na pungência da hiperprodutividade e do consumismo, a predatória ação humana sobre os recursos naturais faz com que os desequilíbrios ecológicos sejam noticiados como desastres ou tragédias. Nas raras (e custosas!) fugas, o contato com a natureza ainda preservada, com a família, os momentos de lazer, as relações afetivas e até o voluntariado e a espiritualidade são capturados por lentes digitais e reduzidos a conteúdos para gerar engajamento nas redes sociais.
Todavia, nada parece ser suficiente para acompanhar a velocidade das engrenagens devoradoras do mundo. Ditadas pelo ritmo das tragédias, do caos, das urgências, as “novidades” nos levam, o tempo todo, para longe de nós mesmos, para lugar nenhum.
E nos acostumamos a pagar por essa eterna peregrinação de autopenitencia e inútil resiliência com a própria saúde.
Tal como nas máquinas, o valor de cada pessoa passa a ser definido, desde a era industrial, por sua eficiência diante dos propósitos que lhe são designados por quem as controla. Para funcionar, para produzir, é preciso ter saúde. Saúde para dar e, com sorte, vender. Para comprar a aparência, o ritmo e os amuletos que nos vendem como felicidade. Perder a vida para poder ganhar a vida.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes