A vida começou a me preparar, desde muito cedo, para a adoção, mais especificamente para a adoção tardia [aquela em que a criança tem mais de 5 anos]. Hoje questiono esse termo ‘tardia’. Tardia para a criança? Tardia para quem quer ser pai?
Tenho lembranças de filmes que tocaram meu coração ainda na infância e já abordavam o assunto. Ainda pequena, devia ter no máximo 9 anos, assisti diversas vezes ao filme Bancando a Ama Seca, com Jerry Lewis, no qual o personagem se deparava com três bebês em sua porta. Eu ficava imaginando que um dia isso poderia acontecer na minha casa também. Aliás, eu vivia questionando minha mãe se isso seria possível, mesmo já tendo quatro irmãos.
Outro filme que me marcou muito foi As Crianças Que Ninguém Queria. Nessa história, um jovem de 21 anos vai “adotando” vários meninos e meninas bem mais velhos que bebês. Mas, por ser um pai solteiro, acaba tendo muitos contratempos para conquistar o direito da paternidade.
Analisando hoje, enxergo esses e muitos outros fatos como uma preparação para que eu e meu marido adotássemos nosso filho, que chegou até nós quando estava com pouco mais de 5 anos.
É preciso enxergar além
Me casei aos 36. Eu e meu marido, Luis, sempre sonhamos em ter filhos, então, após o casamento, resolvemos não demorar para colocar o plano em prática. Mas a gravidez natural não veio. Primeiro tentamos fazer alguns tratamentos sem sucesso. Foi aí que a adoção começou a tomar forma em nossa vida.
Sabíamos que queríamos ter um filho e não necessariamente uma barriga, mas isso só ficou claro para nós dois depois de dois anos de tentativas, frustrações, tristezas, luto e amadurecimento para mudar o rumo da nossa história.
Em setembro de 2009, decidimos, então, procurar a Vara da Infância para entrar na fila da adoção. O primeiro passo foi deixar o nome para participar de um curso, que ocorreu em fevereiro de 2010. Saímos de lá com a seguinte impressão: se você não tem certeza em relação à sua decisão, desiste naquele momento. O curso é como um banho de água fria, pois os futuros pais têm que aceitar que a espera pode ser bem longa, podendo chegar a até dez anos, dependendo do perfil.
Os passos seguintes demoraram aproximadamente um ano para serem concretizados. É preciso reunir muitos documentos, como atestado de sanidade mental, se reunir com a psicóloga da Vara da Infância da sua comarca e receber a visita da assistente social em casa.
No entanto, o mais estranho é ter que escolher as características do seu futuro filho, entre elas cor, idade, sexo, doenças tratáveis ou não, e se ele pode ter sido vítima de abuso sexual, entre outras coisas que geralmente os pais biológicos não pensam no momento que programam ter um filho.
Não colocamos muitas restrições. Quanto mais restrito o perfil, mais demorada é a espera. A única coisa que gravei dessa conversa desconfortável das escolhas foi a última frase da psicóloga: “O filho de vocês chegará na hora certa e vocês não terão dúvidas de que é ele”.
A tão esperada ligação
No final de 2014, uma sexta-feira, recebemos o tão esperado telefonema. Eu estava trabalhando e foi meu marido quem atendeu a ligação. Era a assistente social avisando que havia um menino pronto para ser adotado. Ele era muito carinhoso e o xodozinho do abrigo. Meu marido ficou tão nervoso que não perguntou nada para a pessoa que estava do outro lado da linha. Eu queria saber a história do menino e quando iríamos conhecê-lo, e meu marido não tinha as respostas. Ele estava apenas muito emocionado.
Na segunda-feira, logo cedo, ligamos e marcamos para conhecer o nosso filho. O encontro ficou agendado para o dia seguinte, na escola. Quando entramos, parecia que meu coração ia sair pela boca. Lembro que a assistente social nos levou para uma sala e começou a nos contar sobre ele. De repente, fomos interrompidos por um choro de criança e ela nos disse: “É ele, esse é o chorinho dele”.
Esse momento foi como um parto para mim, quando o filho nasce e chora para dizer que está tudo bem. Nosso tão sonhado menino concretizou seu nascimento em nossa vida naquele instante.
Em seguida, fomos apresentados a ele, que quis nos mostrar que já sabia escrever o próprio nome e fez questão de aprender os nossos. Também insistiu para a gente almoçar por lá já que a sobremesa seria gelatina. Naquele momento nos lembramos da fala da psicóloga da vara da infância no dia do questionário que tanto me incomodou. Não tivemos dúvidas, era ele.
Agendamos as próximas visitas e, depois de um mês, o nosso menino – que tem nome de santo, Marcos Thiago, mas que é muito sapequinha – veio morar em nossa casa. Ele chegou próximo do Natal, um presente para deixar nossa vida mais alegre e colorida.
O período de adaptação é um processo intenso, cheio de aprendizados, alegrias, medos, tristezas e desapego para a criança e uma etapa desconhecida para os pais. Mas com o tempo tudo se acalma, se ajeita.
Não vimos o Marcos nascer, mas vimos a emoção dele em conhecer a praia. Foi um momento mágico ver o brilho e a alegria em seu olhar frente as ondas e a imensidão do mar. Foi conosco que ele aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas, e na natação já é um peixinho. Não vimos seus primeiros dentes nascerem, mas acompanhamos todas as trocas pelo permanente
Ele também cativou, além da família, os vizinhos, pois sempre que encontrava alguém na rua diz: “Bom dia com amor e alegria”. Muita gente me pergunta se demorou para o Marcos me chamar de mãe. Foram necessários uns dois meses para que “mãe” saísse com naturalidade. A palavra “pai” foi fácil, provavelmente porque ele nunca havia tido uma referência de figura masculina.
Já se passaram sete anos desde que Marcos chegou em nossa vida. O que sei é que crescemos juntos dia a dia e sempre falo pra ele que ele sempre foi nosso filho, só demoramos 5 anos e três meses para nos encontrar. Eu não me lembro mais de como era a vida sem ele. Parece que no fundo ele sempre fez parte da nossa existência.
Kátia Camargo é mãe do Marcos Thiago, que hoje tem 12 anos. Cada vez mais acredita que somos todos adotados, por nossos pais, nossos amigos, nossos amores. Gosta muito da música “Portão” que mergulha na adoção de crianças maiores ou jovens que são a grande maioria que vive dentro dos abrigos.