Difícil que um roteiro escrito a oito mãos consiga alcançar o objetivo de se transformar num bom filme. Se é complicado dois roteiristas chegar a um ponto comum, imagine quatro. Aconselha-se, também, que o diretor evite ser o protagonista, além de roteirista. Bem, estas duas complexas questões estão presentes em Super Quem? (Super-héros malgré lui, Bélgica/França, 2021, 82 min), de Philippe Lacheau, um dos quatro que escreveu o filme, além de protagonizá-lo.
O roteiro se revela problemático, justamente, por ter olhares/opiniões demais. Fica difícil até classificar o gênero do filme. Em princípio, parece comédia satírica debochando dos super-heróis do cinema americano – e o trailer se encarrega de encaminhar essa sugestão.
E, de cara, parece mesmo. Veja o estereótipo da produtora tresloucada que não sabe direito nem qual foi o ator escolhido para viver o super-herói no filme “Badman” – e veja como uma letra muda completamente o sentido, como se anunciasse o tom da comédia descompromissada.
No entanto, a história muda o tom e, por incrível que pareça, o filme cresce e a teoria negativa do crítico sobre as oito mãos do roteiro cai por terra. Bem, cresce, mas não muito.
Ele traz novos elementos, mostra que existe a sátira e existe o drama – Badman sofre um acidente e tudo muda.
Muda, por exemplo, porque o roteiro passa a trabalhar com metalinguagem (o filme dentro do filme) e o ator Cédric, nem tão jovem mais, abandona a vida pacata e os azares, para quem nada dá certo, e vira herói de verdade.
Claro que a sátira, neste instante, se evidencia de modo mais consistente. E há cenas bonitas de sequências gravadas em estúdio e soluções criativas e se consegue atmosfera distinta da simples sátira e surge um inimigo – ótima caricatura de Coringa –, além de lutas bem coreografadas.
E dentro desses novos elementos, surge uma paternidade – algo que os super-heróis nem colocam na pauta, pois, em geral, são meio assexuados. E aumenta também a dose de romantismo: além do filho, há um pai (a cena da visita ao pai no hospital com o carro do super-herói é uma grande sacada) e uma namorada (Elodie Fontan).
Ou seja, adeus sátira. Quer dizer, o filme mantém algumas boas piadas e remete o tempo todo aos super-heróis americanos, mas cria vida própria. Há, ainda, algo bem interessante: comparemos os filmes do gênero que os norte-americanos fazem (e existem muitas) de suas múltiplas produções com a francesa e se percebe que Philippe Lacheau está mais próximo de uma homenagem do que sátira.
Nisto residem as qualidades de Super Quem? Até porque o humor francês é pouco digerível – ou as piadas são óbvias ou são meio deslocadas ou sem graça, mas, quando acertam, são ótimas.
E, então, concluímos que Super Quem? não é, exatamente, comédia ao estilo brasileiro – talvez esteja mais próxima, no seu lado inverso, de Woody Allen, que usa temas sérios para provocar risos. Aqui, o tema nada tem de sério, mas o filme invade um terreno mais denso ao ponto de se tornar, sim, um bom filme.
Quanto às três importantes funções de Philippe Lacheau, há um exagero de fato. Ele poderia convidar outro ator para o papel e ficar na direção e no roteiro. Mas se o resultado final é bom, como sustentar esta crítica? Fica parecendo má vontade do crítico.
Pode ser. O diretor também tem seus maus humores, pois em várias cenas ele detona com a produtora, assim como escritores digladiam com editores e artistas abominam críticos.
Há muitos filmes que ironizam a crítica (no tempo dos jornais impressos tal procedimento era mais visível), como embrulhar peixe com noticiários em papel. A vingança do crítico era escrever texto favorável, ver o artista enquadrar a página e exibi-la na estante ao lado de troféus. Ou ver sua frase retumbante no cartaz do filme na porta do cinema.
Ao final ao Super Quem? não cabe nem uma nem outra coisa, pois há roteiros escritos a oito mãos que dão certo e diretor que acumula cargos demais e também funciona. Melhor assim. É mais saboroso elogiar que falar mal.
O filme está em cartaz nos cinemas. Em Campinas, pode ser visto na rede Cinemark do Shopping Iguatemi
João Nunes é jornalista e crítico de cinema