Avanço irreversível da Inteligência Artificial de um lado, a permanência de redes de trabalho escravo de outro. O mundo do trabalho é uma contradição só nesta altura do século 21. Enquanto a corrida tecnológica aponta para uma sociedade nova, as correntes do atraso permanecem, a impedir a plena dignidade humana.
Neste cenário, a agenda da sustentabilidade, e especificamente a agenda ESG para as empresas, deve considerar como um de seus maiores desafios as questões relacionadas ao trabalho como um grande problema ético a ser enfrentado. Não adianta divulgar lindas ações na área ambiental, se as condições de trabalho dos próprios colaboradores ou de terceirizados não respeitam de fato os direitos humanos.
E os direitos humanos, nessa terceira década do século 21, devem contemplar novas perspectivas além daquelas apresentadas pela Declaração Universal que, por sinal, completa 75 anos em dezembro. Quando a Declaração foi aprovada, em 1948, o panorama global era outro. A prioridade era evitar novas guerras mundiais e o mundo da tortura, dos desaparecimentos.
Mais de sete décadas depois, houve uma evolução no sentido de que os chamados direitos humanos da nova geração também consideram outros aspectos da diversidade humana. Hoje também são essenciais as questões de gênero, de etnia, que não foram devidamente incorporadas na histórica e fundamental Declaração Universal dos Direitos Humanos. E sem falar nos Direitos da Terra, da natureza.
Assim, respeitar a sustentabilidade, os princípios da Agenda ESG, necessariamente hoje significa também promover a diversidade no corpo de colaboradores. Também significa, por exemplo, evitar o etarismo, ou idadismo, a discriminação por idade.
Há um vasto caminho a percorrer até que o mundo do trabalho incorpore todas essas demandas contemporâneas, mas é vital que isso ocorra. Sabe-se que empresas ativistas, que realmente assumem os conceitos ideais da agenda ESG, são muito melhor vistas hoje pelo consumidor global, cada vez mais informado e exigente. Hoje o consumidor se informa pela TV, pelo rádio, pelo podcast, pelas redes sociais, pelos jornais e revistas, por vários canais, em suma. Uma empresa que quiser apenas maquiar as suas práticas não vai se sustentar durante muito tempo.
E tudo começa pela forma como essa empresa trata seus funcionários, pratica a diversidade, prima-irmã da sustentabilidade. Mas também é crucial estar atento aos fornecedores, a como eles também encaram o mundo do trabalho. Porque já são vários os exemplos de exploração de mão-de-obra infantil ou escrava, ou de atentados ao meio ambiente, em um ponto distante da cadeia de produção, que acaba sujando, este é o termo, sujando uma marca mais ou menos conhecida no mercado globalizado.
Mas também é cada vez mais emergente, como indicado no início, o conjunto de desafios relacionados aos impactos dos avanços tecnológicos no mundo do trabalho. A substituição de trabalho humano por máquinas já é evidente em bancos, supermercados e outras áreas. Agora a Inteligência Artificial em estágio super avançado também é um drama para outras atividades.
Daí a urgência de um debate mais amplo e profundo sobre os impactos da AI e outros avanços tecnológicos na sociedade de hoje e do futuro.
Como ficará a nossa privacidade? Quem controla e eventualmente pode utilizar os nossos dados pessoais? Eu particularmente não me sinto seguro com a legislação existente a respeito. A minha sensação é a de que, mesmo com os avanços legais registrados, ainda não estamos devidamente seguros.
O mesmo no caso dos efeitos da escalada tecnológica no mundo do trabalho. Ainda falta uma discussão mais séria sobre isso. Em especial depois da pandemia, que acelerou a digitalização da economia. Era inevitável que acontecesse, e ainda bem que existe a Internet, que ajudou a salvar a economia e a sociedade planetárias de um colapso de proporções ainda maiores do que vimos.
Mas também existe o outro lado da corrida tecnológica, que também deve ser considerado, e isso inclui as suas consequências para o mundo do trabalho. Recentemente teve grande repercussão a divulgação de um manifesto assinado por centenas de personalidades, inclusive do mundo tecnológico, reivindicando uma moratória no desenvolvimento da IA. Sou particularmente cético sobre isso vai ocorrer, mas de qualquer modo é preciso aprofundar esse debate.
Entretanto, voltando à realidade do mundo do trabalho ainda existente, dos empregos que ainda existem, pelo menos é necessário que sejam cumpridas algumas normas legais já existentes. No caso do Brasil, espera-se, no contexto do novo governo federal, que o país finalmente ratifique e coloque em vigor o Protocolo de 2014 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) à Convenção sobre Trabalho Forçado, de 1930. A ratificação do Protocolo é fundamental no enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil.
Na época de sua aprovação, na Conferência Internacional do Trabalho em 2014, o Protocolo foi saudado como um importante instrumento para o combate às condições de trabalho análogas à escravidão. O Protocolo entrou em vigor em 9 de novembro de 2016 e a partir de então os países que o ratificaram passaram a ter que cumprir as obrigações nele contempladas.
Para garantir o cumprimento do Protocolo, a OIT possui um sistema de supervisão sofisticado que verifica se os governos efetivamente adotaram as medidas necessárias. O sistema está fundamentado na análise periódica dos relatórios fornecidos pelos países, avaliando as ações e apontando questões, quando necessário. Os resultados dessa supervisão são públicos, o que significa que qualquer pessoa, seja jornalista, ONG ou cidadão, pode acompanhar como um país está cumprindo suas obrigações.
De acordo com o Sistema de Informação sobre Normas Internacionais do Trabalho da OIT, até o momento 60 países já ratificaram o Protocolo, incluindo aqueles democráticos, como Alemanha, Dinamarca, Reino Unido e Bélgica, e outros historicamente de governos autoritários, como a Arábia Saudita, que já ratificou e onde o instrumento entrou em vigor em 26 de maio de 2022.
Nas Américas, já ratificaram o Protocolo o Canadá, Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, Peru e Suriname. O México ratificou e o Protocolo entra em vigor em 2024. O Brasil ainda não ratificou, o tema continua parado no Congresso Nacional. É uma questão central para a conquista da sustentabilidade que, é bom repetir, não se esgota na estratégica questão ambiental.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]