Na escala de tempo da geologia, a humanidade e todos os demais seres vivos que habitam a Terra hoje em dia estão compreendidos numa época chamada de Holoceno, que começou há quase 12 mil anos, quando eventos climáticos levaram ao fim do último período glacial do planeta, favorecendo o avanço da espécie humana por todo o globo a partir da agricultura. Pode parecer bastante tempo, mas esse é apenas mais um capítulo numa história geológica de pelo menos 6,5 bilhões de anos!
Ainda assim, por conta dos profundos impactos da presença humana após a Revolução Industrial, cientistas defendem a designação de mais duas épocas contemporâneas: o Antropoceno, que teria começado na segunda metade do século XVIII, e o Tecnoceno, coincidindo com a virada do milênio e a globalização da era informacional que vivemos atualmente.
Os registros na superfície terrestre que caracterizam eras, períodos e épocas anteriores incluem fósseis, crateras meteoríticas e marcas de grandes eventos geológicos, como movimentação de placas tectônicas e intensas variações no nível do mar, geralmente sucedidas por eventos de extinção em massa e profundas transformações nas dinâmicas ecológicas do planeta.
Tanto no Antropoceno quanto no Tecnoceno, as marcas deixadas pela passagem do ser humano da Terra incluem cicatrizes da mineração e do uso de armas nucleares, devastação de extensas áreas florestais, contaminação de solos, lençóis freáticos e oceanos, alterações na composição atmosférica pela queima de combustíveis fósseis, produção de lixo radioativo e até a formação de rochas com plásticos em sua composição.
Além disso, as consequências da manipulação genética e da bioengenharia, principalmente na agropecuária, a liberação de gases que intensificam o efeito estufa e o uso irresponsável de produtos tóxicos nas cadeias produtivas, têm levado ao desequilíbrio de ciclos naturais, criando condições para o surgimento de superbactérias, vírus com potencial pandêmico, fenômenos climáticos extremos, extinção de espécies e estragos que podem atravessar o sistema solar, a exemplo do lixo espacial de satélites artificiais e equipamentos vagando além dos limites da nossa gravidade.
O Tecnoceno, diante desse cenário fatalista, surge não como solução ou alternativa ao desencadeamento de efeitos catastróficos decorrentes de escolhas individualistas e ações imediatistas, mas como produto da negação dos acontecimentos e do desejo de conduzir a humanidade a novos destinos sem subverter a lógica predatória de destruição e exploração tomada como “progresso” há séculos.
Abduzidas por seus smartphones, as pessoas alienam-se de si mesmas e de quase tudo que acontece nos lugares onde seus corpos habitam, ignorando a gigantesca e crescente demanda por energia, matérias-primas e trabalho que há por meio do funcionamento das infovias, bem como os resíduos híbridos produzidos pela lógica do consumismo, do espetáculo e da vigilância – incluindo montanhas de lixo eletrônico, negacionismo científico, crises de ego e narcisismo, tráfico de dados e a desumanização da vida.
Poderá, o metaverso, abrigar espécies animais e vegetais numa cada vez mais irreversível catástrofe ecológica de proporções globais? Terão, as criptomoedas, poder de compra para regular as chuvas, as marés e fazer os alimentos brotarem do chão envenenado? Saberá, a inteligência artificial, como reconstruir a indecifrável criatividade humana quando, como milhares de outras espécies, formos extintos? Conseguiremos, a tempo, fazer com que a nanotecnologia reverta os estragos que, por ganância, ingenuidade ou arrogância, continuamos a causar? Irão, os bilionários, fretar voos em seus foguetes particulares na colonização de estações espaciais de luxo?
Apesar do tom alarmista, é importante lembrar que, sim, ainda temos escolhas a fazer. Diferente dos meteoritos que determinaram o fim das Eras Paleozoica e Mesozoica milhões de anos atrás, cuja trajetória não podia ser alterada, o destino da humanidade não é imutável. Pelo contrário, reflete a impermanência das nossas decisões e ações. O que estamos perseguindo, enfim, que custa tanto ao sistema-Terra? Dinheiro? Fama? Poder? Imortalidade? Para quê?
Embora saibamos que nenhuma vida é eterna, é fundamental reconhecer que cada uma delas é preciosa e única. É essa consciência que constitui nossa humanidade, afinal.
Na busca pela criação de robôs e dispositivos que simulem o inigualável potencial humano, cada vez mais temos nos transformado em corpos ‘maquínicos’, programados para seguir ordens e perseguir sonhos plantados em nossas mentes e corações por quem realmente pode desfrutar da vida sem se preocupar com a guerra, a fome, a escassez.
Sessenta milhões de anos atrás, as criaturas que dominaram o planeta durante o Triássico, Jurássico e Cretáceo, encontravam o fim que abriria caminho para a evolução dos mamíferos sobre a Terra. Quem contará a história que virá depois do Tecnoceno?
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Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.