É possível que você nunca tenha ouvido falar em pelo menos um dos três termos que intitulam este artigo, mas é quase certo que vivencie, diariamente, as nuances da forma como se manifestam e regulam as relações socioculturais da era informacional.
Os debates envolvendo a ética acompanham o nascimento da própria filosofia, tendo origens em pensadores como Confúcio e Sócrates, transformando-se à luz dos acontecimentos em mais de três mil anos de crises civilizatórias pelo mundo todo. De Rui Barbosa e Paulo Freire a Marilena Chauí, Leonardo Boff e Ailton Krenak, o Brasil continua buscando caminhos para enfrentar o legado perverso do colonialismo escravocrata e as heranças da exploração socioeconômica, assim como tantos outros países na América Latina, África e Ásia, enquanto enfrenta novos desafios trazidos pelos irrefreáveis avanços tecnológicos no século XXI.
Em 1985, o filósofo estadunidense James Moore usou o termo techoetics em reflexões sobre propriedade intelectual, privacidade, confiabilidade e impactos mercadológicos das tecnologias na época em que a internet começava sua escalada de interconectiva em escala global.
Antes, embora como ficção, autores como Yevigeny Zamyatin, Aldous Huxley e George Orwell já provocavam reflexões importantes (e alarmantes) sobre o poder das tecnologias utilizadas para propósitos autoritários, como descrito nas obras “Nós” (1921), “Admirável Mundo Novo” (1932) e “1984” (1949). Isaac Asimov, autor de “Eu, Robô” (1950) foi seguido por uma série de outras obras, como “Androides sonham com ovelhas elétricas?” (1968), de Phlilip K. Dick, que inspirou o filme Blade Runner (1982), dirigido por Ridley Scott, e o clássico ciberpunk “Neuromancer” (1984), de William Gibson, referência de “Matrix” (1999), das irmãs Wachowski.
Além de visionários para a época em que foram concebidos, os títulos citados têm em comum a flagrante preocupação da humanidade diante de uma revolta das máquinas e da inteligência artificial, que se tornaria cada vez mais perigosa, tirânica e corruptível à medida que se assemelhasse ao ser humano.
A série “Black Mirror”, que estreou em 2011, dirigida por Charlie Brooker, é uma das produções mais recentes sobre as implicações da tecnoética (ou sua ausência) diante do uso cada vez mais frequente e quase irrestrito de ferramentas e dispositivos tecnológicos sem consciência crítica, senso de cidadania e regulamentações suficientes para inibir a potencialização de discursos e crimes de ódio, disseminação de informações e notícias falsas, aplicação de golpes envolvendo estelionato, coerção, ciberbullying, falsidade ideológica, assédio, prostituição, pedofilia e até assassinatos e politicas de extermínio.
Lamentavelmente, não é segredo que a internet vem sendo utilizada para fins antiéticos e desumanos, da mesma forma que o avanço das tecnologias tem aprofundado a precarização do trabalho, agravando o desemprego estrutural e ampliando abismos entre uma minúscula parcela da população, que sabe utilizar com destreza e ganhar muito dinheiro com softwares, algoritmos e tráfico de dados, e uma esmagadora multidão de autônomos autômatos, ‘emprecários’ que passam horas, dias, anos trafegando nas redes, à deriva, num fordismo reinventado, onde a esteira de produção virou a barra de rolagem infinita do smartphone.
A antagônica visão sobre as máquinas e a modernidade também acompanha a jornada civilizatório há séculos.
Durante a Revolução Industrial, já era perceptível que as mudanças estruturais nas sociedades europeias e, depois, no mundo todo, alterariam profundamente o modo de viver das pessoas. Os gigantescos avanços na produção de alimentos, na construção civil, nos meios de transporte e comunicação, na ciência, sobretudo na medicina, foram, com frequência, sustentados por trabalho análogo à escravidão, em guerras por recursos e territórios, favorecendo a concentração de riquezas sem, jamais, ter erradicado a fome ou a pobreza que já existiam antes e que continuam existindo hoje.
Durante o ápice da industrialização da Inglaterra no século XIX, houve um levante da classe trabalhadora diante do avanço das máquinas ocupando postos de trabalho e cristalizando o domínio dos meios de produção por minorias de burgueses capitalistas. Em meados dos anos 1800, antes mesmo da concepção das teses de Marx e Engels, o ludismo denunciava e lutava contra o desemprego em massa, a persistência da exploração socioeconômica nas teóricas democracias europeias e a segregação das classes sociais.
Séculos depois, vemos que organizações sindicais nos centros urbanos e movimentos sociais no campo continuam sendo marginalizados e criminalizados, enquanto a mão-de-obra da população de menor poder aquisitivo, como de entregadores e entregadoras de aplicativo, segue desvalorizada, subordinada às ordens e regras de aplicativos que mediam e regulam nossas vidas como nem mesmo Adam Smith supôs fazer um dia a tal “mão invisível”.
A flexibilização de leis e acordos trabalhistas, logo depois do golpe articulado contra Dilma Rousseff a partir das redes sociais, abriu brechas ainda maiores para que as pessoas tenham que pagar, com tempo e dinheiro, para trabalhar e acumular riquezas não para si, mas para bilionários vistos como semideuses por quem já abriu mão de sua identidade para viver a ilusão de vidas virtuais como expectador da própria realidade.
Da mesma forma que não seria possível imaginar os séculos XIX e XX sem teares, máquinas a vapor, trens e automóveis, é impossível pensar no século XXI sem o vasto aparato tecnológico que conecta o planeta e o espaço sideral às infovias. Ainda assim, correntes dissonantes autodenominadas neoludistas tentam remar contra o oceano utilizando recursos que vão desde sabotagens e ciberataques a bancos de dados, hackeando páginas, vazando informações sigilosas e derrubando servidores, até abordagens mais alinhadas à democracia e ao senso de civilidade, buscando a tecnoética na criação de Leis que resguardem direitos trabalhistas e garantias sociais, bem como estimulem a formação de um pensamento crítico, consciente e responsável diante do uso das tecnologias.
Apesar da sofisticação de nossos tempos, tornaram-se epidêmicas a depressão, a ansiedade, a tristeza, a exaustão – além da fome, da miséria e tantas outras violências. E o que impede que uma retumbante revolução se apodere da sociedade e abra caminhos diferentes, que devolvam às pessoas o direito de viver desfrutando de tudo que a dedicação, a criatividade e o trabalho do ser humano pode criar? A antirrevolução se manifesta através de um conformismo normalizado, conduzindo à inércia rotineira de uma insatisfação implosiva, que faz a abdicação do exercício ético da liberdade soar como um tipo de força admirável, resiliente, autodestrutiva.
Não à toa, custa tão caro insistir na mudança e opor-se a sistemas tirânicos regidos pelo medo e pela desumanização do outro. As contas precisam ser pagas no final do mês e o mundo da ficção está aí, simulado nas virtualidades realistas, para que nossas frustrações, expectativas, sonhos e inquietações escorram pelos ralos da indiferença sem interferir nas realidades externas aos mundos codificados das telas brilhantes.
A rebeldia e a resistência, tão exaltadas em ficções como Star Wars (1977), de George Lucas, Harry Potter (1997), de J.K. Rowling, Jogos Vorazes (2008), de Suzanne Collins, ou Divergente (2011), de Veronica Roth, são condenadas e reduzidas a baderna, vandalismo e terrorismo no mundo real, assim como a coragem e a criatividade são desestimuladas caso não sirvam explicitamente para a manutenção da ordem vigente – o consumismo.
Analogamente, a repressão, a tirania e o autoritarismo exercidos pela personificação do “mal” nas tramas, tornam-se mecanismos aceitos e até mesmo protegidos para manter a estabilidade de sistemas frequentemente combatidos e destruídos em realidades paralelas, mas defendidos e legitimados pelos mesmos expectadores que vibram com as ações que julgam impossíveis ou inaceitáveis no tempo-espaço que ocupamos.
A inteligência artificial pode até substituir a mão-de-obra humana e viabilizar sistemas intrincados de controle e vigilância disfarçados de entretenimento, mas não vai resolver os paradoxos morais ou matemáticos dos quais é produto.
Para pensar uma tecnoética humanizada e significar o neoludismo com realismo e autonomia crítico-reflexiva é necessário ir além de falsas dicotomias e moralidades genéricas, como fizeram brilhantemente Machado de Assis, Jorge Amado, Lima Barreto, Ariano Suassuna, Lélia Gonzalez, José Saramago, Eduardo Galeano, e como têm feito Itamar Vieira Junior, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Chimamanda Adichie, Achile Mbembe e tantas outras pessoas que constroem pontes e caminhos de utopias tangíveis que só serão materializadas se forem coletivamente construídas.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.