No último domingo, dia 02 de outubro, aconteceu o primeiro turno das eleições de 2022, sob enorme expectativa de pessoas que continuam tentando se manter firmes diante do cenário caótico em que o país se encontra, marcado pelo crescimento da fome, da precarização do trabalho, da inflação, do endividamento, da violência e do desmonte de setores ligados à saúde, educação, habitação e proteção do meio ambiente.
Mesmo assim, a força de um moralismo muito combativo, coordenado principalmente a partir das redes sociais e de templos religiosos, se fez presente não só na diferença apertada entre os candidatos à presidência que irão disputar o segundo turno, Lula e Bolsonaro, mas, principalmente, na eleição de representantes do legislativo fortemente alinhados às ideologias fundamentalistas do bolsonarismo.
É fato que houve conquistas importantes nas alas progressistas mais à esquerda, com ampliação de quadros do PSOL-REDE e do PT-PV-PCdoB, e marcos históricos, como a eleição inédita de mulheres indígenas e mulheres transexuais à Câmara Federal. Em contrapartida, a direita social democrata foi devorada pela direita extremista, que conseguiu volume para neutralizar até mesmo os partidos do centrão, fisiologistas majoritários no Legislativo desde o fim da ditadura civil-militar em 1985.
Ainda que seja saudável para o presidencialismo haver contraposição entre Legislativo (deputados/senadores) e Executivo (presidente), como forma de garantir que se fiscalizam e sejam forçados a discutir e buscar consensos com moderação, a composição do Congresso a partir de 2023 traz o quase impossível desafio de dialogar com alas que se pautam pelo negacionismo científico, pelo discurso armamentista da violência contra grupos marginalizados, pelo fundamentalismo religioso, pela exploração da classe trabalhadora e pela destruição do meio ambiente como forma de assegurar o lucro mercenário de banqueiros, especuladores e megaempresários. Isso supondo que Lula vença as eleições.
Na eventual continuidade do governo Bolsonaro, dessa vez com amplo apoio do Congresso, haveria carta branca para colocar em prática as aventuras insanas da ultradireita fascistóide que dá as caras em outros países, como Hungria, Turquia e Itália, militarmente escorada, engolindo até mesmo o poder Judiciário, com autoridade legal para mudar a Constituição Federal e reafirmar a agenda nefasta de destruição de garantias sociais e direitos humanos em que se apoiam as democracias populares. Censura, sigilo, violência e repressão para asfixiar a oposição e silenciar denúncias de corrupção, incompetência e abusos de poder.
Nomes importantes da centro-direita e da direita democrática têm se manifestado em apoio a Lula justamente por considerar os perigos de um governo totalitário com os três poderes controlados por lideranças que não demonstram nenhuma preocupação com valores éticos, fraternidade e compaixão, diversidade de pensamentos e liberdade de expressão, a menos que seja a sua própria.
Fernando Henrique Cardoso, Ciro Gomes e Simone Tebet sabem que o grande desgaste entre Lula e um congresso bolsonarista em quatro anos de governo pós-pandemia poderia direcionar um eleitorado insatisfeito à terceira via, puxando novamente o suposto equilíbrio entre esquerda e direita para o centro. Foi assim na reconstrução da Europa pós 2º guerra mundial, quando o “estado do bem-estar social” apresentou-se como alternativa à ultradireita nazifascista e à esquerda autoritária stalinista. As mortes provocadas pela guerra, pela fome, pela repressão militar, pela tirania, pela intolerância e pelo ódio, entretanto, jamais puderam e nunca poderão ser revertidas ou, sequer, compensadas.
Em outras palavras, a vitória de Lula indica quatro anos de tensões e desgaste político na tentativa de implementar, ainda que minimamente, políticas públicas voltadas a recuperação de investimentos em saúde, educação, habitação, pesquisa e ciência, proteção ambiental e de grupos vulneráveis, ao mesmo tempo em que terá que lidar com as demandas mercadológicas de recuperação de prejuízos e aumento de lucros numa esperada retomada pós-crise. A reeleição de Bolsonaro, por outro lado, pode abrir caminho para destravar de vez a agenda neoliberal de desmonte de empresas estatais, órgãos e serviços públicos, incluindo o SUS e as universidades federais, ao mesmo tempo em que ganhará ainda mais espaço o discurso fundamentalista de intolerância, baseado em dogmas e distorções religiosas contra pessoas que não se enquadram no padrão ditado como norma pelo conservadorismo.
O cálculo de quem, ainda assim, não se sente representado nem por Lula e nem por Bolsonaro, pode ser genericamente reduzido às margens de lucro nos próximos quatro anos em cada cenário, ou no capital político que poderá ser construído por diferentes formas de oposição a qualquer um dos dois possíveis governos. Há que se considerar, por fim, o que ainda restará de Brasil e de democracia daqui a quatro anos em cada uma das possibilidades.
Se domingo pareceu um dia longo, outubro promete arrastar-se ainda mais. Pra muita gente, principalmente quem vem sofrendo com desemprego, fome, miséria, perseguição e violência, sobreviver aos próximos anos poderá ser um salto de esperança na busca por dignidade e justiça social ou, fatalmente, uma jornada impossível.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.