Uma das grandes perdas no cenário da alta velocidade contemporânea é a da capacidade de sonhar, de projetar utopias. Então vamos falar um pouco de utopia e de como o Brasil pode contribuir com um novo modelo utópico de civilização.
Entendo ser fundamental falar de utopia hoje porque a civilização contemporânea, cada vez mais tecnológica, atinge em cheio o sentido da existência. Nos versos magistrais de T.S.Elliot, publicados originalmente em 1925, quando já havia ocorrido o horror da Primeira Guerra Mundial mas nem se imaginava que viria um pesadelo maior, o da Segunda: “Nós somos os homens ocos./ Os homens empalhados./ Uns nos outros amparados./ O elmo cheio de nada./ Ai de nós”.
Pois a sociedade tecnocrática gerou homens ocos. Cheios de tanta ciência e tecnologia, de tanto consumo de recursos naturais e energias humanas, mas ocos de valores espirituais, esvaziados do sentido profundo da ética e da solidariedade, cegos para a beleza da vida que, apesar disso tudo, continua bailando lá fora, em sua dança encantadora e resistente.
Uma nova civilização, e aí vem a utopia, terá que ser biocêntrica – a vida no centro de tudo. Não antropocêntrica, com o ser humano se sentindo dono de uma natureza inanimada – porque ela, natureza, não é inanimada, é cheia de vida, e baila e quer bailar. Não machista e por isso hierárquica em todos sentidos – o olhar feminino, embebido de vida, será determinante, e com ele o olhar de todos os grupos sociais excluídos historicamente porque “improdutivos” e “irracionais” sob a ótica do pensamento tecnocrático.
As tradições culturais e espirituais mais íntimas dos povos, de todos os povos, serão respeitadas e resgatadas, como alimento saboroso para uma Ecofilosofia vigorosa e criadora. A descentralização será uma das marcas da Ecocivilização, que por isso mesmo vai valorizar a energia solar e eólica, a energia que não será mais fonte de cobiça e guerras. Porque uma das grandes fontes das guerras contemporâneas, nós sabemos, é a disputa pelos combustíveis fósseis, que estão na base de uma das maiores crises atuais, aquela das mudanças climáticas e seus impactos cada vez mais profundos.
Guerras. Essa palavra precisa ser banida de uma nova civilização. A resolução de conflitos sempre será de forma não-violenta. Uma nova civilização precisa ser pacífica porque fundada na justiça social e ambiental. Uma Ecopolítica, por sua vez, garantirá a participação de todos na vida pública – uma cidadania ativa, protagonista, resultado de Educação cada vez mais inclusiva, transversal e transformadora.
O Brasil tem muito a contribuir para a Ecocivilização. País com a maior reserva de água doce, a maior floresta tropical e, por extensão, a maior biodiversidade, é o país da biodiversidade cultural – no Brasil se fala mais de 100 línguas, por causa dos povos indígenas sobreviventes, e estão aqui os ecos culturais e religiosos de vários e vários povos originários da Europa, da Ásia e, claro, da África. Com sol o ano todo e com um litoral de 7 mil quilômetros, o Brasil está vocacionado para grande laboratório das energias limpas.
Talvez nenhum país tenha tanta condição histórica de auxiliar a mobilização planetária por uma nova civilização. Claro, em parceria com a Índia, países africanos, sulamericanos e outros, igualmente biodiversos como ele. Mas para que cumpra essa vocação, o Brasil precisa equacionar alguns dilemas.
Superar a fome, a pobreza extrema, como primeira tarefa. Outro dilema é a superação de qualquer forma de preconceito, de racismo, porque são cruéis fatores impeditivos da verdadeira cidadania, a do respeito aos direitos integrais de todos, desde que nascem.
E o Brasil ainda precisa superar o dilema do conflito entre o rural e o urbano. O Brasil ainda vivencia os impactos da rápida transição do mundo rural para o universo urbano, cada um com seus valores às vezes antípodas e que às vezes entram em conflito. O ritmo alucinante da vida citadina é fatal para o espírito de solidariedade, de diálogo franco e de reverência com as coisas da natureza e da alma humana, que são mais presentes no mundo rural. A mudança foi muito rápida, o deslocamento de milhões de pessoas da zona rural para a zona urbana não foi apenas físico. O mais importante é o elenco de modificações em conceitos, valores, da forma de ver o mundo, o humano, a vida toda.
O futuro do Brasil será definido em certa medida pela forma como for equacionado esse conflito. A grande contribuição do Brasil, ou uma delas, para uma nova civilização global talvez seja essa, a de identificar os pontos de contato entre os mundos rural e urbano, em uma tentativa de síntese entre o que há de bom entre as duas faces que, afinal, são da mesma moeda. Não se trata de aprofundar as diferenças, mas de buscar a aproximação entre o que há de positivo entre as duas situações. Nem a sacralização exagerada do rural, nem a supervalorização do que há no urbano. Grandes saltos civilizatórios foram obtidos por sínteses como essa.
O mundo está desejoso de respirar novos ares – os ares do começo, da infância da criação. Nesse sentido o Brasil pode contribuir muito, porque ele tem, nós temos, alma de água, e a água está no início de tudo. Para todo lugar que olhamos nós vemos água. Mas não estamos cuidando tão bem dela, não é mesmo? A Amazônia, maior concentração de água do mundo, é a região de piores índices de saneamento no país.
Então cuidemos da d’água, recuperemos nosso contato com a água. Também resgatemos o contato com a terra, o lodo. A nossa capacidade de construir o novo, de esculpir o futuro.
Com os pés na terra e na água, voemos, e ninguém sonha mais em voar do que nós, brasileiros. A invenção do avião não poderia ter saído de outra nação. Bartolomeu de Gusmão e Santos Dumont são os intérpretes fiéis, feito tecnologia, do desejo imemorial do brasileiro… de voar.
Mas só podemos sonhar e voar porque nós, filhos de impressionante biodiversidade étnica, cultural e natural, temos, de novo, alma de água. Deixemos a água fluir, vamos nos apegar ao que vale à pena, às riquezas imateriais que dão sentido à vida.
Para que tudo isso brote, seja fértil, que o Brasil resolva outro de seus grandes, maiores, dilemas, a Educação. Sempre falada, e ainda distante da Educação ideal, transformadora, de fato democrática. Vamos falar sempre de Educação, porque sem ela não há qualquer utopia.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]