Quando tanques, armas e a Lei voltam-se contra a população desarmada para fazer valer a vontade de um pequeno grupo e seus interesses, rompe-se a ordem democrática e revela-se um governo autoritário, ditatorial, tirânico. Para compreender a grave corrosão da democracia vivenciada pela Venezuela nos últimos anos, é preciso analisar as circunstâncias políticas, culturais e econômicas que envolvem não só o vizinho sul-americano, mas todos os países da América Latina, que compartilham de um longo passado colonial-escravista, de liberdades parciais, sempre condicionadas aos imperativos de potências europeias e dos EUA.
Após três séculos de ditadura colonial, sob a cruz, a espada e a coroa espanhola, a Venezuela teve sua independência declarada em 1811, liderada por Simón Bolívar, e teve que lutar por ela até 1823, quando finalmente a Espanha a reconheceu e foi criada a confederação da Gran Colômbia, formada também pela Colômbia, Panamá, Equador, Peru e Bolívia. Na época, consolidou-se um governo relativamente democrático, onde homens maiores de 21 anos com propriedades podiam votar para eleger representantes que dividiam-se nos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Durante o século XIX, enquanto outras nações latino-americanas buscavam sua independência e a superação do colonialismo, passaram a vigorar políticas expansionistas e intervencionistas estadunidenses, a exemplo do Destino Manifesto e da Doutrina Monroe, utilizadas como justificativas para a tomada de territórios, invasão e interferência político-econômica em países como México, Guatemala, República Dominicana, Nicarágua, Haiti, Cuba, Porto Rico, Chile, Panamá e tantos outros durante o século XX.
Na época, a democracia dos Estados Unidos, embora mais madura e consolidada, também enfrentava crises internas, a exemplo da Guerra da Secessão (1861 a 1865), quando os Confederados defenderam com veemência a manutenção da escravidão, a inferiorização das mulheres na sociedade e a prevalência de valores ultraconservadores contrários à modernização urbano-industrial dos EUA.
Embora os vizinhos norte-americanos fossem uma república considerada democrática, só em 1870 a 15ª Emenda proibiu a negação do direito ao voto com base na cor da pele ou condição social para os homens, o que não foi suficiente para evitar a segregar da população descendente de pessoas escravizadas. A 19ª Emenda garantiu, só em 1920, o direito ao voto para as mulheres e só em 1965, com a Lei dos Direitos de Voto, a exclusão racial no processo eleitora passou a ser, de fato, enfrentada num país que permanece racista até hoje.
No Brasil, seguimos tutelados pela ditadura colonial até 1822, quando o governo foi substituído por uma ditadura imperial, de fajuta independência, que seguiu até 1889, um ano após a tardia abolição da escravidão, que atingia cerca de 1,5 milhão de brasileiros e brasileiras à época. No final do século XIX, estima-se que 85% da população brasileira era analfabeta e, portanto, não teve direito a voto até a Constituição de 1934, podendo, de fato, exercê-lo só a partir de 1945. Anos depois, a ditadura civil-militar (1964 a 1985) desfigurou completamente o exercício democrático eleitoral, que só foi restabelecido recentemente, com a Constituição de 1988.
De volta à terra de Bolívar, um século após a ruptura da Gran Colômbia, em 1830, a ditadura militar de Juan Vicente Gómez (1908-1935) fez da Venezuela uma importante fornecedora de petróleo para os Estados Unidos.
Gómez abriu o país para investidores estrangeiros, dando poder e influência a empresas privadas como a Standard Oil of New Jersey (atual ExxonMobil), além de mineradoras e bancos privados estadunidenses. Isso resultou em uma crescente dependência econômica da Venezuela em relação aos EUA, especialmente no setor petrolífero.
Após a morte de Gómez, a ditadura abrandou-se sob comando do general José López Contretas, abrindo caminho para a eleição democrática de Isaías Medina Angarita, em 1941, que teve seu governo interrompido por um golpe militar em 1945. Rómulo Ernesto Betancourt liderou uma ditadura de 1945 a 1948 e, depois, foi eleito presidente democraticamente em 1959, quando o sufrágio universal já havia sido conquistado no país.
Entre os dois mandatos de Betancourt, Marcos Pérez Jiménez comandou um golpe militar contra seu antecessor, Germán Suárez Flamerich, tornando-se ditador da Venezuela entre 1952 e 1958, levando o país a depender cada vez mais dos Estados Unidos, recebendo apoio financeiro e militar diante da Guerra Fria, alinhando-se à doutrina Macarthista através de políticas anticomunistas e de distanciamento da América Latina.
Enquanto isso, prosperava a Revolução Cubana, deflagrada pelo assalto de revolucionários liderados por Fidel Castro ao quartel de Moncada em 26 de julho de 1953. Em 1959, com forte apoio popular e militar, a tomada de Havana pelos revolucionários forçou a fuga do então ditador cubano, o general Fulgêncio Batista, aliado e financiado pelos EUA, abrindo caminho para que Castro assumisse o poder, que só deixou em 2008. Em quase meio século de governo, Fidel liderou a resistência cubana contra ataques vindos dos EUA, como o assalto à Baía dos Porcos, em 1961, e a Crise dos Mísseis, em 1962, além do embargo econômico que começou em 1960 e vigora até hoje contra a ilha.
Manifestações populares contra o governo centralizador e unipartidário de Castro sempre foram duramente reprimidas, manchando seu legado de reformas sociais com o autoritarismo característico de ditaduras militares.
Além disso, embora leis de igualdade racial tenham sido adotadas após a revolução, o conservadorismo legado pela influência religiosa do colonialismo fez com que pessoas homossexuais fossem perseguidas, presas e torturadas em “Unidades Militares de Ajuda à Produção” para “desviados sexuais”, de forma similar ao que fundamentalistas religiosos no Brasil chamam de “cura gay”. Em 1976, após reconhecimento oficial das violências praticadas, a Constituição cubana passou a criminalizar a discriminação com base na orientação sexual.
Nos EUA, grupos supremacistas, como a Ku Klux Klan, e neonazistas ganhavam força ao pregar o extermínio de pessoas negras e homossexuais, além da subalternidade das mulheres a partir de dogmatismos religiosos e a perseguição política de quem se alinhava a ideais progressistas consideradas socialistas ou comunistas. Em 1965, Malcolm X foi assassinado e, em 1968, Martin Luther King Jr. teve o mesmo fim. Ambos foram lideranças proeminentes na luta por direitos civis nos EUA, país teoricamente democrático, enquanto o Ocidente declarava guerra ideológica às agendas de igualdade econômica, reforma agrária e justiça social propagadas desde a Revolução Russa pela URSS, que também sofria gravemente com o militarismo antidemocrático deixado pela ditadura de Stalin a seus sucessores.
Voltando à Venezuela, o segundo governo de Betancourt (1959-1964), dessa vez eleito democraticamente, esteve associado a uma agenda política que combinava elementos do socialismo democrático, nacionalismo e progressismo. Houve avanços com relação à conquista de direitos trabalhistas, educação pública, reforma agrária e distribuição menos desigual de recursos à população. Durante seu mandato, reformas democráticas e sociais significativas foram feitas, incluindo a nacionalização do petróleo, o que desagradou profundamente o empresariado estadunidense.
Nas décadas de 1970 e 1980, a Venezuela viu-se cada vez mais condicionada à exploração do petróleo, incapaz de conter o avanço das desigualdades sociais e da corrupção público-privada.
Concomitantemente, a Operação Condor, liderada pela inteligência estadunidense, promovia massacres, sequestros, tortura e execução de críticos às ditaduras militares na América do Sul, considerados comunistas, incluindo ativistas, ambientalistas, jornalistas, artistas, camponeses, estudantes, professores e professoras, fazendo dezenas de milhares de vítimas na Argentina, Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai e Bolívia.
Na Colômbia e no México, o intervencionismo estadunidense escorou-se na falaciosa guerra às drogas, desestabilizando frágeis estruturas democráticas que iam se construindo a partir das bases populares, aparelhando o Estado, cada vez mais submisso aos interesses estadunidenses sem, no entanto, jamais ter evitado que narcomilícias e grupos paramilitares se infiltrassem no governo e vitimassem o povo trabalhador desses países, de forma parecida com o Brasil, a partir dos anos 1990.
Na Ásia, a indústria da guerra lucrava fortunas com o endosso da OTAN a guerras como no Vietnã, Irã, Iraque, Palestina e Afeganistão, ao passo em que guerrilhas eram fomentadas em países africanos que viam recursos como petróleo e metais preciosos sendo saqueados por empresas estrangeiras, atrasando até hoje a consolidação das democracias diante do imperialismo europeu-estadunidense por séculos no continente.
Na Venezuela, em 1992, o então tenente-coronel Hugo Chávez tentou duas vezes derrubar Carlos Andrés Pérez, que governou de 1979 a 1979 e de 1989 a 1993. O segundo mandato de Pérez foi marcado por uma série de medidas econômicas impopulares, conhecidas como “El Paquetazo”, como parte de um programa econômico liberalizante imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso resultou na grave crise econômica e social que levou o povo às ruas de Caracas no episódio conhecido como “Caracazo”. Essa e manifestações posteriores foram duramente reprimidas com violência militar e prisão de opositores políticos.
Diante da instabilidade interna, Pérez buscou apoio internacional e submeteu-se ainda mais aos Estados Unidos, abrindo mão da soberania nacional venezuelana, subordinando-se às políticas econômicas neoliberais ditadas pelos EUA na década de 1990.
Rafael Caldera, que governou de 1969 a 1974, voltou ao poder após o impeachment de Carlos Andrés Pérez e do curto governo de Ramón José Velásquez, e foi presidente de 1994 a 1999, dando sólidos passos nas duas ocasiões em direção à construção de vias verdadeiramente democráticas na Venezuela, sendo sucedido no segundo mandato por Hugo Chávez, democraticamente eleito, que se manteve no poder até 2013.
Com o fortalecimento econômico da América do Sul a partir de acordos multilaterais e a formação de blocos como o Mercosul, os países latinos finalmente vislumbravam a conquista de democracias que pudessem substituir o passado colonial, imperialista, militarista e antidemocrático dos séculos passados. A Constituição de 1999 da Venezuela adicionou ao Executivo, Legislativo e Judiciário mais dois poderes: o Cidadão, responsável pela fiscalização do Estado através de grupos civis organizados e movimentos sociais, e o Eleitoral, análogo à Justiça Eleitoral, no Brasil; além disso, expandiu garantias sociais e direitos humanos ligados à saúde, educação, trabalho digno, proteção dos povos originários e do meio ambiente, reforçando espaços de democracia participativa, através de referendos, plebiscitos, conselhos; e promoveu a nacionalização de setores estratégicos, incluindo petróleo, energia e telecomunicações.
Mesmo assim, com a globalização do neoliberalismo, a dependência econômica da Venezuela em relação à exportação de petróleo e a centralização econômica do governo em empresas estatais ligadas ao setor caminharam para um cenário econômico catastrófico deflagrado pelas oscilações do preço da commodity e políticas de boicote vindas dos EUA.
Em 2002, Chávez resistiu a uma tentativa de golpe endossada por setores militares de oposição, financiada pelo empresariado venezuelano alinhado às políticas neoliberais estadunidenses. Com amplo apoio popular, o então presidente se manteve no poder e reforçou sua popularidade e legitimidade como liderança no país. Todavia, passou a abusar do poder e enfrentar com repressão militar e violência opositores políticos, inclusive os que articulavam manobras golpistas como as que seriam vistas em outros países anos depois.
Em 2012, o presidente democraticamente eleito no Paraguai, Fernando Lugo, sofreu um golpe Legislativo nos mesmos moldes do processo que levou à destituição de Dilma Rousseff, em 2016, no Brasil.
Nicolas Maduro, então vice-presidente da Venezuela, assumiu a presidência após a morte de Hugo Chávez, em 2013. Em abril do mesmo ano foram realizadas eleições que confirmaram a vitória de Maduro, com uma margem muito apertada contra seu opositor, Henrique Capriles. Em 2017, acusando a Assembleia Nacional de tentar um golpe para depô-lo, Maduro dissolveu o Congresso e, pouco tempo depois, revogou a própria decisão, agravando a crise entre os poderes e a polarização política na Venezuela, usando a instabilidade interna como justificativa para a crescente militarização e mobilização de tropas policiais pelo país.
Em 2019, Evo Morales, presidente democraticamente eleito da Bolívia, se viu encurralado pela oposição política guiada pela elite econômica e setores das Forças Armadas, que forçaram sua renúncia e a convocação de novas eleições. No mesmo, o ex-deputado venezuelano Juan Guaidó autodeclarou-se presidente interino da Venezuela, mas não teve legitimidade suficiente para consolidar um golpe contra Maduro.
Hoje, diante do crescimento descontrolado da inflação, da queda dos preços do petróleo, boicotes econômicos ordenados pelos EUA, aumento do desemprego, do endividamento e uma crescente insatisfação popular, Maduro tem reagido com cada vez mais violência contra protestos populares, ordenando prisões políticas, detenções arbitrárias e levando à morte dezenas de pessoas desarmadas em confrontos com militares e policiais armados.
Nos últimos anos, movimentos sociais ligados ao campo, povos originários e organizações estudantis protagonizaram levantes populares no Chile, no Peru, no Equador e na Colômbia, enfrentando a ascensão de grupos ultraconservadores, neoliberais e de extrema-direita que pegaram embalo com governos fascistóides como de Trump e Bolsonaro. Bilionários continuam lucrando, tiranos disputam o poder e o povo, iludido por pequenos privilégios e demagogias, banca as regalias de uma minúscula elite político-econômica com trabalho duro e, tantas vezes, com a própria vida.
Parafraseando José Saramago em discurso proferido em 2008, é possível perceber que alcançamos não muito mais do que uma “democracia sequestrada, condicionada, amputada. O poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não se gosta e a pôr outro de que talvez venha a se gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas em uma outra grande esfera e todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do Comércio, os bancos mundiais. Nenhum desses organismos é democrático. E, portanto, como falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Onde está, então, a democracia?”.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.