Com a vitória do neoliberal populista Javier Milei nas eleições da Argentina e a grande possibilidade de trocas presidenciais na Ucrânia e na Venezuela ano que vem, o nefasto panorama de apostas político-econômicas começa a se reformular, vislumbrando um redirecionamento das pressões da OTAN no leste europeu a uma nova onda de intervencionismo dos EUA nos vizinhos mais ao sul.
O deputado argentino que se elegeu com discurso extremista, pautado na mesma retórica em que se baseou o fascismo, disfarçada de radicalismo pseudoliberal, já começa a articular um plano de choque econômico para o país que, desde a ditadura militar de 1976 a 1983, amarga um desastroso cenário de endividamento público, desindustrialização, inflação e desemprego estrutural.
O acirramento político na Argentina não se divide, simplesmente, entre esquerda social-progressista e direita econômica-liberal, tampouco entre setores que apoiam um Estado plural-democrático e grupos militares-nacionalistas.
O desenvolvimento nacional do segundo maior país latino-americano, desde sua independência, sempre esteve condicionado a acordos tirânicos e disputas com países europeus, além da mão pesada de órgãos como BIRD, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, controlados pelos EUA, tutelando indiretamente as decisões de toda a região da bacia do Rio da Prata.
As linhas que dividem o eleitorado e as expectativas de nossos hermanos são tênues, oscilando entre o saudosismo do governo de Juan Domingo Peron, que em muitos aspectos assemelhou-se aos governos de Getúlio Vargas, no Brasil, e as promessas da utópica (e perversa) aceleração econômica do neoliberalismo, ecoando a sequência histórica de governos militares, ora patrióticos, ora mercenários, revezando o poder com o Partido Justicialista – de Carlos Menem, Nestor e Cristina Kirchner, e Alberto Fernandez, chamados “peronistas”.
De maneira parecida, a Venezuela, cuja história também é permeada pela disputa de poder entre setores nacionalistas conservadores, militares entreguistas, socialistas autoritários e empresários golpistas, sofre com a dramática situação que mergulha o país numa das piores crises de sua história.
Diante do boicote econômico imposto pelos EUA, o país onde nasceu Simon Bolívar enfrenta enormes dificuldades para se restabelecer financeiramente, vendo crescer a insatisfação popular diante da fome, da pobreza, da violência e de movimentos populistas de extrema-direita que se apresentam como a antítese do governo antidemocrático de Nicolás Maduro.
Depois do fracasso vexaminoso da tentativa de golpe de Juan Guaidó em autoproclamar-se presidente da Venezuela, sem qualquer legitimidade constitucional ou, sequer, popular, é Maria Corina Machado que vem ganhando espaço nas redes socais e nos veículos de informação que se opõem à continuidade do chavismo quando Maduro deixar o poder. Embora de forma mais moderada que o alucinado Javier Milei, Maria Corina apoia-se no desalento da população venezuelana para defender agendas neoliberais de privatização e submissão da soberania nacional ao FMI, ao Banco Mundial e à vontade de bilionários que controlam os meios de produção e comunicação sem jamais terem sido eleitos por povo algum.
Se, na Venezuela, as maiores reservas de petróleo do planeta atraem a atenção e o cobiça de oportunistas e especuladores, megainvestidores do setor energético (os mesmos que lucram com a destruição de países do Oriente Médio), são as reservas de lítio, na Argentina, que explicam o profundo interesse de bilionários, como Elon Musk, no recurso indispensável para a fabricação de baterias usadas em carros elétricos, por exemplo.
Não seria muito diferente da lógica tirânica que vigorou durante a Operação Condor e as ditaduras assassinas, coordenadas pela Inteligência estadunidense, no final do século passado. No Chile, o cobre nacional foi privatizado e entregue ao capital estrangeiro tão logo que o traidor golpista, general Augusto Pinochet, assumiu o poder após o assassinato do presidente socialista democraticamente eleito, Salvador Allende, em 1973.
Décadas depois, a mesma estratégia entreguista, camuflada pelo neoliberalismo, converteu empresas estatais em máquinas de produzir lucro para uma minúscula fração de empresários bilionários, às custas da exploração da mão-de-obra nacional e do encarecimento dos produtos e serviços que, antes, eram atrelados à garantia de direitos sociais e geração de recursos para investimentos do governo em áreas como educação, saúde, habitação e segurança.
Não faz muito tempo que o golpe contra Dilma Rousseff, no Brasil, abriu espaço para as reformas previdenciária e trabalhista e, durante o governo embalado por mentiras e falcatruas de Jair Bolsonaro, permitiu “passar a boiada” do desmatamento, de concessões e privatizações de empresas estratégicas enquanto a população sofria com a negligência e incompetência dos mandatários no ápice da pandemia de Covid-19.
É possível que, em 2024, o FMI ofereça ainda mais crédito para a Argentina tentar sair do buraco – ou mais corda para se enforcar nas contas públicas. Mas não vai sair barato.
E o preço a se pagar será, muito provavelmente, condicionado a entrega de recursos valiosos a empresas que comandam os oligopólios transnacionais do agronegócio, da mineração, das comunicações, dos transportes, das finanças, da energia e da indústria de base.
Milei, que se diz antissistema, é nada mais que um bobo-da-corte fabricado pela indústria cultural manipulada por estelionatários como Steve Bannon, responsável pela ascensão política de Trump. Seu papel será facilitar a corrosão das frágeis democracias latino-americanas diante de ditadores do capital, bilionários que manipulam a opinião pública, infestando os espaços democráticos com medo, mentiras e ódio, interessados apenas na ampliação do próprio poder e no lucro imediato.
Aqui no Brasil, a liderança de Lula, pelas vias democráticas, é fundamental para romper com o discurso reacionário de combate aos fantasmas do comunismo e dos inimigos imaginários dos falsos moralistas, fanáticos religiosos e ultraconservadores.
O fortalecimento do Mercosul, com a formalização da entrada da Bolívia, bem como das relações multilaterais do BRICS +, materializam caminhos de desenvolvimento do Sul global, reafirmando a autodeterminação dos povos e nações. Na Venezuela, todavia, a militarização do governo de Maduro diante das pressões e do intervencionismo estadunidense acende um barril de pólvora que pode fazer explodir uma nova guerra – eventualmente em substituição à da Ucrânia e a da Palestina, garantindo que os lucros da indústria das armas e das mortes não diminuam.
Divididos, os países da América Latina tendem a permanecer reféns do neocolonialismo, discutindo pautas moralizantes infladas por fake news, pautadas pelo sensacionalismo e pelo fundamentalismo da pós-verdade, enquanto agendas fundamentais para a superação da fome, da pobreza e das desigualdades sociais, através de parcerias e investimentos em educação, ciência, pesquisa e tecnologia, além da integração nacional e reafirmação das democracias populares permanecem excluídas dos debates mais amplos e do imaginário popular.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em Linguagens, Mídia e Arte