Certamente a decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que os planos de saúde não terão mais obrigação de cobrir exames, tratamentos e procedimentos não previstos no chamado “Rol Taxativo” da Agência Nacional de Saúde (ANS) é no mínimo polêmica e lesiva aos interesses de seus beneficiários.
A imediata reação de muitos grupos de defesa do consumidor, entidades representativas de pacientes, entidades que representam as inúmeras especialidades médicas, parlamentares de várias tendências, partidos políticos, e parte da imprensa, mostra que este não é um assunto simples e muito menos consensual. Temos, através de nosso Departamento Universitário e da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), buscado garantir e ampliar o acesso e qualidade de acesso a todos os nossos pacientes, sejam de planos privados como do Sistema Único de Saúde (SUS).
A busca da equidade tem sido uma bandeira fundamental, garantindo a essencialidade das ações de saúde. Isto não tem sido fácil tendo em vista as restrições orçamentárias e financeiras cada vez maiores no âmbito do Ministério da Saúde do Governo Federal. A redução constante de recursos nas últimas décadas tem sobrecarregado os outros entes federados (Estados e Municípios) bem como às famílias brasileiras.
Estimativas mostram que as famílias têm alocado cerca de 5.8% do produto interno bruto (PIB) na cobertura e cuidados de saúde. Este percentual é superior a muito países onde o Índice de Desenvolvimento Humano é muito superior ao nosso.
Por outro lado, a alocação pública de recursos em saúde não ultrapassa os 4.0% do PIB. Algumas áreas são críticas como na Oncologia, Doenças Raras, Autismo etc. onde a locação de recursos através de mecanismos não orçamentários é cada vez maior. Não bastassem estes argumentos, as mensalidades dos planos de saúde tiveram uma elevação recorde de 15,5%, em média, neste mês de junho.
Pois bem, em minha opinião, pelo menos dois fatos e consequências de grande relevo ocorrerão se esta decisão for mantida e que são igualmente graves: 1- redução acentuada de acesso dos beneficiários de planos de saúde às suas necessidades de cuidado em saúde, particularmente em áreas de notória especialização e 2- pressão ainda maior sobre o SUS, com inevitável aumento no número de atendimentos e das ações judiciais, sobre os entes federados.
Além disto, os dramas diários que já são vividos por muitos pacientes e famílias aumentarão e as dificuldades de acesso serão cada vez maiores e, muitas vezes desesperadores, dependendo do tipo de doença ou cuidado a ser obtido ou mantido. A judicialização é um instrumento democrático, mas que tem comprometido de maneira crescente os orçamentos públicos com resultados intangíveis. Se esta decisão não for revertida pelo Supremo Tribunal Federal podemos antever um dramático crescimento destas demandas, até porque, os pacientes e familiares não terão outra saída que não buscar seus direitos de cidadão garantidos pela constituição e leis de garantia de acesso.
Não creio que apenas a discussão econômica ou o argumento de abusos por parte de pacientes, familiares e seus representantes, sejam adequados e conclusivos sobre o assunto. O direito a vida e qualidade de vida são, certamente, os nossos bens maiores e devem ser avaliados, prioritariamente, nesta discussão.
Há um certo cinismo na argumentação de que os planos de saúde negam sistematicamente os procedimentos para que, aqueles que podem, acionem a justiça para obter a sua demanda. Com isto haveria um retardo e redução das demandas pois muitos não teriam acesso a advogados e não poderiam entrar nos vários tribunais.
Se isto realmente ocorre, seria criminoso e eu, sinceramente, não posso acreditar. Nós sabemos ainda, o quanto é demorado e burocrático a introdução de novos procedimentos ou tratamentos no rol taxativo da ANS. Por experiência própria posso dizer, isto pode levar anos. No âmbito do SUS este tempo é ainda maior e muitos não são incorporados por decisão da Conitec e do Ministério da Saúde.
Nós somos e sempre seremos os procuradores de nossos pacientes. Procuraremos sempre os defender naquilo que a ciência, madura e conclusiva, indica como essencial. Esta é a nossa obrigação de profissional e gestor de saúde.
É fundamental que os direitos sejam mantidos e aperfeiçoados e não reduzidos ou retirados.
Espero que esta decisão seja revista. E para isto, precisaremos do Supremo Tribunal Federal (STF), última instância de recurso de nossa sociedade e que levará em conta as salvaguardas constitucionais a respeito deste tema.
Não tem sentido que tudo isto esteja acontecendo em um momento em que todos temos dificuldades crescentes em manter nossos compromissos e cuidados de família.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020