Quando da publicação deste texto no Hora Campinas, uma delegação formada por 16 colegas hematologistas brasileiros estará em Pavia – Itália, na região da Lombardia, para o 23º encontro da Associação Brasileira de Hematologia (AIBE – sigla em italiano da Associazione Italo Brasiliana di Ematologia) que será realizado nos dias 04 e 05 de setembro de 2023.
Neste evento, como em todos os anteriores, discutiremos projetos de cooperação no campo científico e educacional. Entretanto, este será diferente pois celebraremos os 20 anos da entidade e lançaremos um livro em três línguas (português, italiano e inglês) que conta e ilustra um pouco deste período de trabalho e amizade.
O objetivo deste livro foi relatar e perenizar uma história de sucesso entre grupos de especialistas em hematologia e que têm, como grande dificuldade, um “oceano atlântico” entre eles, mas que nunca se dispersaram.
Esta é distância entre Brasil e Itália, mais de nove mil km. Todos sabem a influência da imigração italiana no desenvolvimento do Brasil particularmente no século 20 e no sul e sudeste do país. Apenas no Estado de São Paulo, estima-se que mais de 15 milhões de seus habitantes sejam ítalo descendentes. No Brasil, este número é muito maior. Vários Estados brasileiros têm grandes colônias italianas, sendo que em alguns municípios e regiões do país mantém não só hábitos e costumes como mantém a própria língua (por exemplo o dialeto veneto).
O Brasil tem entre as suas mais importantes características ser um país multe étnico, e isto nos faz um povo acolhedor e generoso. A Itália, por sua vez, influiu de maneira decisiva no progresso e nos costumes de vários países das Américas, com suas tradições nas artes, letras, culinária, etc. e, por que não dizer, na ciência tendo importantes descobertas ao longo dos séculos.
Certamente, uma das mais importantes características do povo italiano sempre foi a criatividade. Dentro da Hematologia, isto não foi ou é diferente.
Tivemos grandes influencias e aprendizados oferecidos pelos professores italianos e pudemos, em tempos mais recentes, estabelecer grandes pontes de cooperação técnica e científica. Até aí, este relato poderia ser semelhante à de outros países, instituições e professores, com o mesmo sucesso e resultados. Mas com a Itália tem sido diferente. Conseguimos grandes cooperações científicas e educacionais, mas temos feito isto com grande afeto e amizade fraterna.
Nossa aventura contemporânea teve início na década de 80 onde alguns colegas da Universidade Federal do Rio de Janeiro foram complementar suas formações em Genova e Roma no campo do transplante de medula óssea e infecções em imunossuprimidos. Na década de 90, uma forte colaboração se estabeleceu no campo das aféreses, que culminou na introdução deste procedimento fundamental à medicina moderna no Brasil. Nossas primeiras máquinas de aféreses eram italianas e nosso treinamento foi feito por eles.
Ainda na década de 90, outros projetos se desenvolveram no campo dos transplantes autólogos e alogênicos de medula óssea, agora com a utilização da célula progenitora obtida por mobilização para o sangue periférico e as estratégias de salvamento em linfomas agressivos com a chamada terapêutica sequencial de altas doses desenvolvidas, inicialmente, pelo grupo de Milão.
Estes projetos fizeram com que houvesse uma extraordinária aproximação entre nós, não mais nos campos da ciência e da pesquisa, mas pessoais. Nos tornamos grandes amigos. Nossas famílias também se aproximaram e vários encontros, jantares, viagens etc. passaram a ser programados de modo que pudéssemos, pelo menos uma vez por ano estar juntos de alguma maneira.
No final da década de 90, fizemos dois eventos “experimentais” em Campinas e no Rio de Janeiro. Foram eventos de caráter educacional e que foram a base para que em 2003 criássemos a Associação Ítalo Brasileira de Hematologia (AIBE). Foi um acontecimento!
A AIBE foi criada oficialmente em Genova na Itália (portanto a AIBE é uma entidade jurídica italiana) e cinco colegas brasileiros e cinco italianos de entidades diversas firmaram a sua criação. A partir daí, tínhamos o compromisso de fazer um evento científico ao ano, uma vez na Itália e outra no Brasil, em alternância.
De certo modo, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), adotou a AIBE e nos anos mais recentes estes eventos passaram a compor o calendário de nossa entidade “mãe”. Alguns eventos da AIBE também foram feitos durante o Congresso da Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO).
Muitos projetos de pesquisa e de educação se desenvolveram nestes vinte anos e a cooperação evoluiu, incorporou jovens médicos, professores, residentes, pesquisadores da área biológica etc. Porém, nossa amizade fez com que conhecêssemos melhor o Brasil e a Itália. Fizemos muitas viagens a pontos turísticos de ambos os países, juntos. E aí nasceu a ideia do livro. Nossas reuniões e viagens geraram um número enorme de fatos curiosos, alegres, “perigosos” etc. e que, com grande satisfação gostaríamos de ofertar a nossos leitores.
Fizemos este livro a muitas mãos, brasileiras e italianas. Mostramos documentos, fatos e fotos de nosso relacionamento nestes encontros e demonstramos nossa profunda amizade e apreço mútuo. Esta não é uma história passada, mas presente e futura.
É claro que estamos sempre em renovação e ampliação deste grupo, mas estes ligames ficarão. Em nossos momentos de lazer e relaxamento, a descontração sempre foi de tal ordem que faz lembrar os filmes de Mario Monicelli da década de 70, “Meus Caros Amigos” (Amici Miei, em italiano), onde grandes amigos faziam grandes “traquinagens”, uns com os outros ou com outras pessoas.
Nosso espírito alegre e brincalhão se assemelha muito ao dos italianos e, talvez, tenha sido mais uma herança que adquirimos de nossos antepassados. Mas certamente, viver assim é muito melhor.
Foi isto que tentamos demonstrar em nosso livro: é possível ser sério e produtivo no trabalho e absolutamente descontraído nas relações humanas. E viva a cooperação entre Brasil e Itália!
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Atual secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo.